Relatos de um Peregrino Russo - Uma análise literária e simbólica
Professora Ana Paula Barros¹
Resumo
Este trabalho propõe uma análise literária da obra Relatos de um Peregrino Russo, com ênfase em sua estrutura narrativa, simbolismo místico e inserção na tradição espiritual da Igreja Católica Oriental e Ocidental. A obra, escrita entre 1856 e 1861 e composta por sete relatos, articula, de forma não linear, elementos do relato autobiográfico, do ensinamento ascético e da citação bíblica, sobretudo 1Ts 5,17. A análise aborda o contexto histórico da Rússia Imperial no século XIX, caracterizado pela abolição da servidão e pelas tensões políticas. Estabelece-se também o diálogo com a chamada “Era Dourada” da literatura russa, aproximando a obra do universo simbólico e reflexivo de autores como Dostoiévski e Tolstói. Conclui-se que a obra ultrapassa os limites do testemunho, configurando-se como expressão simbólica e estética.
Palavras-chave: literatura russa; oração de Jesus; hesicasmo; cristianismo oriental; experiência estética.
1- Introdução
Este artigo propõe uma análise literária da obra Relatos de um Peregrino Russo, um clássico da espiritualidade cristã ortodoxa do século XIX. Através da jornada de um narrador anônimo em busca da oração incessante, o texto apresenta uma interessante intersecção entre literatura, mística e tradição oral. O objetivo deste artigo é investigar como a estrutura narrativa, os elementos simbólicos e os fragmentos da obra constroem uma experiência estética e espiritual singular, inserida no contexto da literatura russa e da tradição hesicasta.
A experiência estética, no campo da literatura, pode ser compreendida como o encontro entre leitor e texto, no qual se mobilizam emoções, reflexões e percepções — em uma palavra: catarse. Trata-se de uma vivência irrepetível, que envolve tanto a fruição quanto a construção de sentido por parte do leitor; a obra é, de certa forma, recriada dentro do leitor. No caso do Peregrino Russo, essa experiência é intensificada pela linguagem simbólica, pelo ritmo contemplativo da narrativa e pela presença de elementos místicos que convidam à oração.
Inserida no contexto da literatura russa do século XIX, a obra brota de um período de efervescência criativa conhecido como a “Era Dourada”. Autores como Dostoiévski, Tolstói e Gógol exploraram, nesse momento, os dilemas existenciais, a espiritualidade e as contradições sociais da Rússia imperial. Características marcantes dessa literatura são: profundidade psicológica das personagens; reflexões filosóficas e morais; crítica social e retrato da desigualdade; estilo realista, com descrições densas e introspectivas.
O conceito de hesicasmo, prática espiritual que estrutura a jornada do protagonista, é derivado do grego hesychía (silêncio, quietude). O hesicasmo é uma tradição contemplativa da Igreja Ortodoxa Oriental que busca a união com Deus por meio da oração contínua, especialmente a chamada “oração de Jesus” (“Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador” ou “Jesus, Filho do Deus Vivo, tem piedade de mim”). Essa prática, descrita na Philokalia e vivenciada pelos monges do Monte Atos, constitui não apenas o tema do texto, mas também sua forma: a estrutura, o ritmo pausado e a linguagem simbólica refletem a própria dinâmica da oração incessante.
Embora originada no seio da tradição ortodoxa russa, é amplamente acolhida por diversas Igrejas Católicas Orientais em comunhão com Roma, especialmente aquelas de tradição bizantina, como a Igreja Greco-Católica Ucraniana e a Igreja Melquita. Essas Igrejas, conhecidas como sui iuris — expressão latina que significa “de direito próprio” — são comunidades autônomas dentro da Igreja Católica, mantendo disciplina, liturgia e espiritualidade próprias, embora permaneçam em plena comunhão com o Papa. A espiritualidade hesicasta que permeia a obra encontra ressonância nessas tradições orientais, que preservam elementos contemplativos similares. O Catecismo da Igreja Católica, ao tratar da oração de invocação, destaca a legitimidade dessa prática ao afirmar: “A invocação do santo nome de Jesus é o caminho mais simples da oração contínua. Repetida frequentemente por um coração humildemente atento, não se dispersa numa ‘multidão de palavras’ (Mt 6,7), mas conserva a palavra e produz fruto pela perseverança” (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, §2667).
A obra, portanto, constitui um portal para ampliar a compreensão da vivência da catolicidade, já que permite o acesso às práticas piedosas das Igrejas sui iuris — frequentemente ignoradas no imaginário católico romano. Essa limitação recorrente repercute diretamente na própria noção do que significa catolicidade.
2. Panorama Histórico-Literário
A obra Relatos de um Peregrino Russo insere-se em um contexto histórico de tensões sociais e políticas. Escrita entre 1856 e 1861, período imediatamente posterior à Guerra da Crimeia, sua composição coincide com um momento crítico da história da Rússia Imperial, caracterizado pela emergência de debates sobre a necessidade de reformas estruturais, mais especificamente a abolição do regime servil, efetivada em 1861. Tal cenário era formado por uma sociedade predominantemente agrária, de base feudal, cujas desigualdades socioeconômicas contrastavam com o fortalecimento das ideias de modernização e abertura promovidas por setores da nobreza e do clero.
Nesse contexto, a religiosidade popular desempenhava um papel importante na vida cotidiana da população russa. A Igreja Ortodoxa detinha grande autoridade espiritual e social, com participação na formação cultural do povo. A figura do peregrino — devoto errante em busca da união com o divino — simbolizava tanto um tipo social marginal quanto um modelo ideal de fidelidade da alma. A obra em questão, ao narrar a trajetória de um indivíduo anônimo (que pode simbolizar a alma humana, a alma russa ou o povo russo) que percorre os campos russos guiado pela ânsia de compreender e viver a oração incessante, reflete de maneira significativa o ethos religioso russo da época.
No panorama literário, a obra conversa com o período consagrado como a “Era Dourada” da literatura russa, abrangendo a primeira metade e meados do século XIX. Essa fase é marcada pela produção de escritores como Dostoiévski, Tolstói, Gógol e Turguêniev, cujas obras exploraram com acuidade os dilemas morais, as contradições sociais e a busca metafísica do ser humano. A literatura russa dessa fase distingue-se por sua densidade filosófica, complexidade psicológica e comprometimento com a crítica à realidade sociopolítica do Império Russo. Embora Relatos de um Peregrino Russo não integre diretamente o cânone literário dessas grandes narrativas realistas, partilha com elas o impulso reflexivo e espiritual, apresentando uma linguagem simples que contrasta com a simbologia do conteúdo, que facilmente toca a bagagem cultural ocidental tanto como obra literária quanto como conto religioso.
Um elemento essencial para a compreensão da obra é sua íntima relação com o hesicasmo, prática espiritual oriunda do monaquismo oriental, baseada na repetição constante da invocação “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador”. Esta forma de oração, conhecida como oração de Jesus, visa à purificação interior e ao alcance do estado de hesychía — silêncio e paz espiritual. A tradição hesicasta é sistematizada na Philokalia (Filocalia, que significa “amor à Beleza” ou "amor ao Bem"), antologia de textos patrísticos que instruem os fiéis no caminho da oração contemplativa. A estrutura da obra, com sua narrativa circular, ritmo introspectivo e repetições meditativas, não apenas tematiza essa espiritualidade, mas a encarna na própria forma literária.
Por fim, a autoria anônima da obra reforça seu caráter universal. Ao abdicar de um nome próprio, o autor (e o protagonista) se anula diante da experiência que testemunha (ou vive), criando um texto que se pretende aplicável a qualquer fiel. Esse anonimato fortalece a dimensão espiritual da obra, distanciando-a da lógica do individualismo autoral e aproximando-a das tradições místicas orientais e da tradição medieval ocidental, em que o sujeito se dissolve e só a obra permanece. Publicada originalmente em Kazan, por volta de 1865, e depois ampliada com a descoberta de manuscritos adicionais em 1911, Relatos de um Peregrino Russo representa, portanto, não apenas um conto cristão oriental, mas também um objeto literário de grande valor histórico, cultural e estético.
3. Estrutura da Obra
A obra Relatos de um Peregrino Russo é constituída por sete relatos, dos quais os quatro primeiros foram publicados originalmente em 1865, enquanto os três últimos vieram à luz apenas em 1911, após a descoberta de manuscritos adicionais.
A narrativa apresenta-se de forma não linear, estruturada por episódios que se sucedem de maneira orgânica, guiados pela experiência cotidiana e incerta do protagonista. Essa forma fragmentária e episódica aproxima a obra de uma narrativa em que cada relato representa uma etapa do caminho interior percorrido pelo peregrino.
Do ponto de vista formal, o texto configura-se como uma estrutura híbrida, mesclando elementos de relato autobiográfico, ensinamento espiritual e citação de fontes religiosas, especialmente da Bíblia e da Philokalia. A presença constante de passagens bíblicas e de ensinamentos patrísticos não apenas legitima a experiência do narrador, mas também insere o texto na tradição da literatura cristã oriental.
A progressão narrativa acompanha o desenvolvimento espiritual do protagonista, desde a inquietação inicial provocada pela leitura de 1Ts 5,17 (“Orai sem cessar”) até a vivência da hesíquia, ou seja, o estado de silêncio interior e união com Deus. Essa trajetória é marcada por encontros com mestres espirituais (como o starets), práticas ascéticas, provações físicas e experiências místicas. Cada relato funciona como uma etapa pedagógica, em que o peregrino assimila novos ensinamentos e aprofunda sua prática da oração de Jesus.
A forma como a narrativa se constrói — com pausas reflexivas e descrições simbólicas — reflete a própria dinâmica da oração hesicasta. O texto encarna a vivência da piedade em sua própria trama literária. O leitor é convidado não apenas a compreender racionalmente o caminho do peregrino, mas a experimentá-lo por si mesmo. A repetição é apresentada como o método de se chegar à união com Deus. Num sentido de vivência, podemos correlacionar a repetição da oração à repetição característica da vida humana, que é, em si mesma, uma série de repetições que pode ser vista como monotonia, mas cuja proposta no conto é justamente funcionar como espelho da oração de Jesus, repetida. Em suma, a obra apresenta a união com Deus, o amor à Beleza, a “santificação pela repetição” — não só da oração em si, mas da forma de viver a vida humana comum, que é uma repetição sem cessar, e que constitui a matéria mesma do "orai sem cessar".
Conclusão
A análise da obra Relatos de um Peregrino Russo evidencia sua relevância como manifestação literária marcada por simbolismo, reflexão e forma estética própria. Inserida no contexto histórico da Rússia do século XIX e articulada à tradição hesicasta, a narrativa configura-se como amostra muito agradável e atrativa da espiritualidade cristã oriental, promovendo uma experiência estética que ultrapassa o texto e envolve o leitor numa atração pedagógica, para que ele também inicie a sua peregrinação de amor à Beleza, amor ao Bem.
¹Ana Paula Barros
Especialista em Educação Clássica e Neuro Educação. Graduada em Curadoria de Arte e Produção Cultural. Professora independente no Portal Educa-te (desde 2018). Editora-chefe da Revista Salutaris e da Linha Editorial Practica. Autora dos livros: Modéstia (2018), Graça & Beleza (2025).
Possui enfática atuação na produção de conteúdos digitais (desde 2012) em prol da educação religiosa, humana e intelectual católica, com enfoque na abordagem clássica e tomista.
Totus Tuus, Maria (2015)