Uma alma piracicabana: a história de Piracicaba contada por uma piracicabana

by - quarta-feira, outubro 27, 2021


Piracicaba, 1954


Aqui tem 5 horas de trabalho manual




Enquanto o Papa Clemente XIII permitia o culto ao Sagrado Coração de Jesus, pedido por Nosso Senhor a uma freira desastrada, que sempre trombava com alguma coisa quando via a madre superiora e que frequentemente deixava os animais comerem a horta do mosteiro — para horror da mesmíssima madre.

Enquanto Catarina (a Grande) garantia a liberdade de culto na Rússia, antes de se lançar no luteranismo, e o Padre Figueiredo inaugurava a Tentativa Teológica num abraço amigável com o pombalismo iluminista, apesar de seu saber extenso em exegese.

Enquanto a Igreja de São Francisco, em Ouro Preto, era erigida por Aleijadinho, e Franz Haydn compunha A Grande Missa com Órgão.

Enquanto tudo isso acontecia dentro e fora do Brasil colonial, em 1766, um capitão português que atendia pelo nome de Antônio Corrêa Barbosa recebeu a incumbência de fundar um povoado à beira do Rio Piracicaba. Então, ele escolheu a margem direita do rio, junto aos extintos índios Paiaguás, que eram vizinhos e rivais dos índios guaranis. Os Paiaguás eram um subgrupo da tribo dos Guaicurus — uma tribo guerreira do Paraguai que usava cavalos para caçada e ataques. Com traços muito determinados, os Paiaguás eram uma tribo nômade e caçadora antes da colonização. Tinham um código de honra que impedia que o guerreiro recuasse em batalha, se orgulhavam de não ter piedade do inimigo, eram peritos em cavalgadura e navegação, e no Paraguai costumavam hostilizar os guaranis, que frequentemente roubavam suas colheitas.

Assim, o Capitão se instalou entre guerreiros — o que parece muito lógico, sendo ele um capitão. A intenção era formar um centro de apoio para as embarcações que desciam o Rio Tietê.

Depois, enquanto era fundado o município de Divinópolis, em Minas, e São José dos Campos, em São Paulo.

Enquanto o rei da Espanha, Carlos III, expulsava os jesuítas da Espanha — sem cogitar que o fundador da ordem era espanhol — e Benjamim Constant dava o seu primeiro choro ao nascer, antecipando seu agir liberal na segunda metade da Revolução Francesa, em defesa da liberdade dos civis, em oposição à guerra voraz de Napoleão, numa defesa da modernidade marcada pela mentalidade de que o comércio é superior à guerra.

Enquanto tudo isso acontecia, a vila no interior de São Paulo ganhou o nome de Vila de Itú (significa salto), oficialmente e devidamente fundada em 1º de agosto de 1767, sob a invocação de Nossa Senhora dos Prazeres.

Mais adiante, em 1774, o cometa Halley resolveu aparecer, a cidade de Campinas foi fundada, a Beata Ana Catarina Emerich nasceu, e a Vila de Itú foi elevada a Freguesia, com o número significativo de 230 habitantes. Acontece que o Povoador tinha Santo Antônio como seu santo de devoção. Portanto, a paróquia instalada, também nesse ano, teve o santo como orago e o Padre João Manuel da Silva como pároco. No entanto, essa transição de um santo para outro não agradou muito ao povo, que tem fama de ser muito fiel, já que conta com essa mistura de índios guerreiros e portugueses desbravadores. Segundo nos conta a lenda — já que esta terra tem muitas — no dia da instalação da paróquia (21 de junho de 1774), os devotos de Santo Antônio, sabendo da determinação dos devotos de Nossa Senhora dos Prazeres em manter Nossa Senhora como padroeira, sumiram ousadamente e corajosamente com a imagem de Nossa Senhora! De modo que não houve jeito de parar a proclamação de Santo Antônio como padroeiro. Foi dessa ocasião que surgiu a lenda, inventada pelo Capitão, que diz que Nossa Senhora dos Prazeres foi levada por anjos Rio Piracicaba abaixo.

O tempo passou, e era preciso pensar em ampliar. Então, no ano pacato de 1784 — já que nada acontecia no mundo — a Vila de Itú resolveu tomar para si a responsabilidade de acontecer e tomou a decisão de mudar de margem. Assim, se instalou na margem esquerda do rio. A mudança realmente foi efetiva: a fertilidade da terra atraiu fazendeiros, e a disputa de terras deu ao ano a dose de mudanças necessária à vida de uma vila. E o Capitão passou a morar na margem esquerda, na casa mais conhecida de Piracicaba: a Casa do Povoador.

Mas a vila ainda não tinha o título de Vila — era uma vila que não era Vila. Então, em 1821, enquanto a Espanha reconhecia a independência da Venezuela, o Uruguai era incorporado ao Brasil, o Rei Dom João VI partia do Brasil e deixava Dom Pedro I como Regente, enquanto Napoleão Bonaparte morria e todo mundo ao redor do Brasil declarava independência da Espanha, Anita Garibaldi, Dostoiévski, Gustave Flaubert davam o seu primeiro choro — em meio a tudo isso, a vila passava a ser, de fato, Vila. Agora com o nome de Vila da Nova Constituição, em homenagem à Constituição Portuguesa, que dava fim ao absolutismo, abria alas à monarquia constitucional e, ao mesmo tempo, afirmava a união real de Portugal e Brasil. O Brasil era uma extensão de Portugal. E ainda a afirmação de que a religião católica era a única religião da Nação Portuguesa — pontos dignos de serem comemorados com o nome de uma Vila, de fato.

Mais uma vez, o tempo passou, e em 1836, a Vila da Nova Constituição se constitui em um respeitado centro abastecedor. Todos os lotes de terra estavam ocupados, os campos cobertos de plantação: café, feijão, milho e algodão. E no mundo ainda existia, como sempre, ares de revolução.


E, enfim, no ano em que Freud deu o seu primeiro choro psicanalítico — que provavelmente reflete alguma querela familiar — 1856, a Vila da Nova Constituição termina a sua saga e é reconhecida como Cidade. Mas ainda faltava um ponto importante: embora o nome “Nova Constituição” fosse cheio de simbolismo político, o povo é guiado pelo nome do coração, e a Vila sempre fora chamada de Piracicaba. Assim, faltava esse último passo na história da saga da nossa pequena vila que queria crescer e ser cidade.


Catedral Santo Antônio, 1959





No entanto, ainda restava a questão dos padroeiros — afinal, todos sabem que os piracicabanos não esquecem de nada com facilidade. Em 1944, em plena Segunda Guerra Mundial, e a Beata Celestina Faron terminando sua jornada terrestre num campo nazista, Santo Antônio era considerado também seu padroeiro. Ou seja, essa cidade tem o orgulho de dizer que tem vários padroeiros, pois é comum que o cortejo do padroeiro seja triplo. Sim, triplo — já que São Benedito entrou para a lista algum tempo depois.

A lenda é a seguinte: conta-se que, por volta de quarenta anos atrás (ou mais ou menos), um prefeito quis botar abaixo a igrejinha de São Benedito. No entanto, os devotos determinados do santo fizeram grande oposição. Todo piracicabano sabe que com São Benedito não se brinca, e que seus devotos têm uma grande razão de levantar a mão como quem diz “espera e verá” quando alguém mexe com a capelinha. Isso se deve ao que aconteceu nessa ocasião. O então prefeito, contrariado com a resistência dos devotos, falou em alto e bom som na rádio que ia, ele mesmo, colocar a igrejinha abaixo na manhã seguinte. Pois não foi preciso outro motivo para o povo se juntar em frente à igrejinha e esperar o prefeito, que devia subir no trator e colocar a igrejinha abaixo, como havia dito. Acontece que o prefeito não apareceu. Foram então saber o que sucedeu com a autoridade... o prefeito estava morto. Por essa razão, todos os devotos piracicabanos de São Benedito não têm dúvida de que mexer na igrejinha com más intenções não é boa ideia.

Por outra lenda, também não é boa ideia deixá-lo fora da procissão do padroeiro. Parece que São Benedito tem algum cargo auxiliar à função de São Pedro de gerenciar a chuva — pois, se ele não estiver na procissão, certeza que choverá. Assim, por muito tempo, a cidade teve a procissão do padroeiro com três andaimes: Nossa Senhora dos Prazeres (por ser a primeira protetora, mesmo tendo sido levada por anjos rio abaixo), Santo Antônio (afinal, todo português tem devoção a Santo Antônio) e São Benedito (“afinal, vai que chove? melhor prevenir.”)

O que parece um capricho devocional caipira diz muito sobre a alma piracicabana formada durante essa jornada de vila à cidade: simples, mas com ímpetos de amplitude. Sempre quando conto essa história, me lembro de Santa Maria Mazzarello, cofundadora (com Dom Bosco) das Filhas de Nossa Senhora Auxiliadora. Ela tinha o hábito de “usar todas as chaves”. O padre Pestarino lhe ensinara que a porta do Céu pode ser aberta com a chave do trabalho, ou da oração, ou da doação — enfim, se usar bem a chave, pode abrir a porta. No entanto, ela decidiu que usaria todas, “só para ter certeza”. Existe algo desse “só para ter certeza, vou usar todas as chaves” na alma piracicabana.

Essa é a história da vila que virou cidade, com três santos na festa do padroeiro — e que gerou a alma piracicabana que é simples, mas que tem sede de amplitude.

Singelamente, Ana














 









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6 comments

  1. Parabéns pelo seu trabalho Ana.
    Deus a abençoe 🙏

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  2. Ler a história de Piracicaba assim foi muito envolvente. Parabéns Ana, além de uma alma com admirável profundidade, você escreve muito bem.

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  3. É ótimo ver um texto que valoriza a história e a cultura de uma cidade. Muitas vezes, detalhes como esses são esquecidos, e você fez um excelente trabalho em manter essa memória viva. Salve Maria Puríssima

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