A leitura tem feito muitos santos
¹Professora Ana Paula Barros
1. INTRODUÇÃO
A frase “A leitura fez muitos santos”, escrita por São Josemaria Escrivá, sintetiza a relevância da leitura como instrumento de formação espiritual e moral no contexto cristão. Escrivá, sacerdote espanhol canonizado em 2002, é reconhecido como o fundador do Opus Dei e frequentemente denominado “o santo do cotidiano”, em virtude de sua proposta de santificação por meio das atividades ordinárias da vida.
No âmbito da espiritualidade cristã, a leitura ocupa papel central como meio de aprofundamento da fé, desenvolvimento das virtudes e promoção da vida interior. Desde os textos bíblicos até os escritos dos santos e teólogos, o contato reflexivo com obras espirituais tem sido considerado um caminho eficaz para a conversão pessoal e o crescimento na intimidade com Deus. Para Escrivá, a leitura não se limita à aquisição de conhecimento, mas constitui uma experiência transformadora que conduz à santidade.
Diante disso, o presente trabalho tem como objetivo geral refletir sobre o papel da leitura como instrumento de santificação. Pretende-se, ainda, analisar como a prática da leitura espiritual pode influenciar a vida cotidiana dos fiéis, promovendo uma vivência cristã mais profunda e coerente com os valores evangélicos.
2. A LEITURA NA TRADIÇÃO CATÓLICA
A tradição católica sempre valorizou a leitura como meio privilegiado de formação espiritual, intelectual e moral. Desde os primeiros séculos do cristianismo, os textos sagrados, os escritos dos Padres da Igreja e as obras teológicas foram considerados instrumentos essenciais para o crescimento na catolicidade e na busca da verdade. Nesse contexto, destaca-se a contribuição de Hugo de São Vítor (1096–1141), teólogo e pedagogo medieval, cuja obra Didascalicon: Da Arte de Ler tornou-se referência na educação cristã.
Segundo Hugo de São Vítor, a leitura é o primeiro passo no caminho do conhecimento e da sabedoria, sendo seguida pela meditação e pela contemplação. Em sua obra, o autor estabelece três preceitos fundamentais para a prática da leitura: saber o que se deve ler, em que ordem se deve ler e como se deve ler. Essa estrutura mostra uma preocupação não apenas com o conteúdo, mas com a formação ampla do leitor, orientando-o para a verdade e para a união com Deus.
A leitura, para Hugo de São Vítor, não é um fim em si mesma, mas um meio de ascese. Ela deve conduzir o indivíduo à contemplação, considerada o grau mais elevado da vida espiritual. Nesse sentido, a escola cristã, segundo o modelo vitorino, não se limita à transmissão de conhecimentos, mas visa formar o ser humano para a sabedoria e para a vida interior.
Além disso, Hugo valoriza a humildade como virtude essencial para o aprendizado. O estudante que despreza qualquer forma de conhecimento demonstra falta de disposição para o verdadeiro saber. Assim, o autor aponta, já na Idade Média, um erro que ainda hoje é recorrente: o desprezo por algumas linhas de escrita consideradas inferiores, como os contos, a literatura em geral e, até mesmo, a leitura bíblica. Por outro lado, tratados e ensaios costumam receber um grau superior de prestígio, embora todos esses gêneros sejam, no que se refere à bagagem literária, complementares.
Dessa forma, a leitura na tradição católica, conforme Hugo de São Vítor, constitui uma prática ordenada, reflexiva e transformadora, pois auxilia o aluno a estudar além de seus gostos pessoais ou do apreço pelo status que determinadas leituras oferecem. A leitura é capaz de conduzir o leitor à contemplação.
3. A PRÁTICA DA LEITURA ESPIRITUAL NA VIDA CRISTÃ
Diferente da leitura informativa ou acadêmica, a leitura espiritual tem como finalidade principal nutrir a alma e orientar o comportamento do fiel segundo os valores evangélicos. Trata-se de uma atividade que exige recolhimento, atenção e abertura para se expor e dispor, sendo recomendada por diversos santos e mestres espirituais ao longo da história da Igreja.
A origem dessa prática remonta à lectio divina, método monástico de leitura orante da Sagrada Escritura, que envolve quatro etapas: leitura (lectio), meditação (meditatio), oração (oratio) e contemplação (contemplatio). Essa abordagem favorece a assimilação do texto bíblico, permitindo que o leitor transforme o conteúdo lido em matéria de oração e ação concreta, sendo esta última o objetivo mesmo da lectio divina, que significa “lição divina”, ou seja, o conteúdo é visto como uma lição a ser colocada em prática de imediato. Daí surgiu a vida santa de Santo Antão, Santo Agostinho, Santo Inácio, que começaram por colocar em prática algo que leram ou escutaram alguém ler.
São Josemaria Escrivá, por exemplo, incluía a leitura espiritual como parte essencial do plano de vida cristã, recomendando que fosse realizada diariamente, mesmo que por poucos minutos. Para ele, a leitura de obras espirituais — especialmente dos Evangelhos, dos Padres da Igreja e de autores clássicos — era um meio eficaz de manter a presença de Deus ao longo do dia e de adquirir critérios sólidos para a orientação das ocupações cotidianas. A construção de critérios é, na prática católica, o principal benefício das leituras espirituais, ou seja, a construção de um acervo de experiências lidas e conselhos recebidos gera uma lista de critérios interiores capaz de fortalecer a fibra interior necessária para estar no mundo sem ser do mundo. Sem critérios, a vida cristã passa a ser balizada por opiniões, modas, discursos de indústrias em busca de lucro, ideologias ou conceitos pré-estabelecidos sem o devido conhecimento.
A prática da leitura espiritual requer disciplina e discernimento na escolha dos textos. Obras como A Imitação de Cristo, História de uma Alma e os escritos de Santo Afonso Maria de Ligório são amplamente recomendadas por sua profundidade teológica e acessibilidade. Além disso, é importante que o leitor se comprometa com a leitura sequencial e reflexiva, evitando a superficialidade e o consumo fragmentado de conteúdos. Conhecimentos fragmentados geram alienação.
Por fim, a leitura espiritual não se limita ao crescimento pessoal, mas também possui dimensão apostólica, ou seja, influencia a sociedade numa dimensão terrestre e prepara as almas, dentro do Corpo Místico de Cristo, para o Reino do Senhor Jesus, numa dimensão espiritual. Ao formar o coração e a mente do cristão, ela o capacita para testemunhar sua fé com firmeza e coragem, que é a concretude e vivência real do sacramento do crisma — o tapa simbólico dado no rosto pelo bispo tem a intenção de simbolizar que o cristão deve evangelizar afastando o medo e a vergonha; deve agir com coragem e firmeza, num santo orgulho do Evangelho. A leitura é um instrumento útil na vida cristã, pois aprimora a dimensão humana e social, mas também fortalece a fibra interior que cada batizado precisa para cumprir o pedido do Senhor de levar a Boa Nova aos quatro cantos da Terra.
4. O PAPEL DOS SACERDOTES CATÓLICOS NO INCENTIVO À LEITURA
Os sacerdotes católicos, como diretores espirituais e educadores da comunidade, desempenham papel fundamental no incentivo à leitura, especialmente no que diz respeito à formação cristã e ao amadurecimento pessoal dos fiéis. A leitura, nesse contexto, não é uma atividade intelectual, mas um instrumento de aprofundamento da fé, de discernimento vocacional e de evangelização — atitude que, no contexto atual, não tem sido desempenhada com a devida atenção. Muito do trabalho pastoral estaria solucionado com indicações de leitura mensal na homilia e — quem dera — uma livraria paroquial com os clássicos católicos básicos.
A literatura também deve ocupar lugar central na formação dos futuros sacerdotes, pois permite o acesso ao coração da cultura humana e à profundidade da experiência espiritual. A leitura de romances, poemas e obras espirituais ajuda a educar o coração e a mente, desenvolvendo empatia, sensibilidade e capacidade de escuta — qualidades essenciais para o ministério pastoral. E talvez esteja neste ponto a grande questão: os reverendos leem pouco. Muito em razão do tempo escasso, e outro tanto por desinteresse. Contudo, ao menos os clássicos seria útil revisitar e instigar o povo que os visite, falar sobre eles, como quem quer que os leiam — ou seja, mais como educador que como teólogo, ou melhor, como um teólogo educador, que é o que os reverendos são ou deveriam ser.
Historicamente, diversos sacerdotes foram grandes incentivadores da leitura. São João Bosco, por exemplo, fundou editoras e escreveu livros voltados à juventude, promovendo a formação moral e religiosa por meio da leitura acessível.
O sacerdote deve orientar os fiéis na escolha de obras que edifiquem a fé e fortaleçam a vida interior. Ao indicar livros, incentivar grupos de leitura, comentar textos nas homilias e promover o estudo da Bíblia, o sacerdote atua como mediador entre o texto e a alma, ajudando os leitores a transformar conhecimento em sabedoria vivida, enriquecendo a homilia, criando vínculo com a comunidade e, acima de tudo, aumentando a confiança o povo na atuação do clero. Além, é claro, de ser uma ótima forma de tirar o diploma de teólogo (e os outros) da gaveta e fazer algo mais com os anos de estudo que o reverendo trilhou.
Portanto, o papel do sacerdote no incentivo à leitura é pastoral, cultural e espiritual. Ao valorizar a leitura como caminho de formação integral (humana, doutrinal e espiritual), o sacerdote contribui para o crescimento da comunidade e para a construção de uma catolicidade mais consciente e madura.
Dentro deste tópico, há aqueles reverendos que alegam que a comunidade é simples, composta por pessoas que não sabem ler, e que esta proposta está fora da realidade. Pois eu respondo, reverendo: não está. É possível realizar leitura em voz alta e, com tantos recursos disponíveis hoje, como mensagens em áudio, é perfeitamente viável incluir os idosos e aqueles que não podem ou não conseguem ler nos grupos, com muita facilidade. E garanto: eles serão os mais atentos, pois alguém teve a caridade de abrir a porta para novos conhecimentos. Rezo a Deus para que o senhor, reverendo, seja uma dessas pessoas.
Lembre-se, senhor reverendo: a atuação e a palavra de um padre valem mais do que as de cem leigos. Precisamos que os bons falem e façam. Os professores iniciam o trabalho, mas o teólogo é chamado a concluí-lo. Rezo a Deus para que o senhor o conclua com temor, sem deturpar nem pôr a perder os nossos esforços.
¹Ana Paula Barros
Especialista em Educação Clássica e Neuro Educação. Graduada em Curadoria de Arte e Produção Cultural. Professora independente no Portal Educa-te (desde 2018). Editora-chefe da Revista Salutaris e da Linha Editorial Practica. Autora dos livros: Modéstia (2018), Graça & Beleza (2025).
Possui enfática atuação na produção de conteúdos digitais (desde 2012) em prol da educação religiosa, humana e intelectual católica, com enfoque na abordagem clássica e tomista.
Totus Tuus, Maria (2015)