Literatura Clássica Católica: Compêndio de Teologia Ascética e Mística de Adolphe Tanquerey - Estrutura Literária e Formação Espiritual na Tradição Cristã
São Jerônimo e o Anjo. Ribera, 1626.
Compêndio de Teologia Ascética e Mística de Adolphe Tanquerey - Estrutura Literária e Formação Espiritual na Tradição Cristã
Professora Ana Paula Barros¹
1 – Introdução
A produção literária de cunho espiritual no período do Renascimento e da Idade Moderna caracteriza-se pela elaboração de tratados voltados à orientação do fiel na busca da perfeição cristã. Nesse escopo, Ascética e Mística constitui uma síntese de reflexão teológica e prática moral.
Sua linguagem possui uma estrutura pedagógica. A clareza expositiva da obra favorece sua recepção como instrumento formativo, o que contribui para sua relevância acadêmica e pastoral.
Nesse sentido, a complementaridade entre ascese e mística – conforme destaca Garrigou-Lagrange ao afirmar que “a ascese prepara o terreno, a mística é a flor que desabrocha” – estrutura a proposta do tratado. A obra será analisada a partir de duas dimensões principais: os aspectos estilísticos da escrita e os princípios pedagógicos da leitura espiritual.
2 – O Estilo Literário
A obra Ascética e Mística insere-se em uma tradição literária que, entre os séculos XVI e XVIII, apresenta uma linguagem marcada por clareza expositiva e pedagógica. Destaca-se, ainda, pelo uso da linguagem mística. Conforme Velasco (2000), essa linguagem emerge da experiência e busca expressar o inefável por meio de imagens discursivas. Nesse sentido, expressões como “noite dos sentidos” e “matrimônio espiritual” não apenas ilustram estados espirituais, mas funcionam como mediações entre o divino e a mente do leitor. O símbolo, segundo Le Fort (1953), ao contrário do conceito abstrato, preserva a densidade do mistério e favorece a abertura à transcendência.
Por fim, a obra adota estratégias retóricas que asseguram sua conformidade com os parâmetros doutrinários da época. Timoner (2013) destaca que os autores místicos frequentemente recorriam a construções discursivas que legitimavam suas exposições diante da autoridade eclesiástica, mantendo a fidelidade teológica durante a narração de acontecimentos espirituais.
“A linguagem mística é subversiva por natureza, pois expressa um conhecimento individual do divino” (TIMONER, 2013, p. 82).
3 – Estrutura Temática da Obra
A leitura espiritual pode ser compreendida como uma “prática de si”, na medida em que opera como um exercício. Nesse contexto, o texto sagrado ou doutrinal deixa de ser apenas objeto de decodificação e passa a atuar como mediador de um processo formativo contínuo.
A leitura espiritual, desse modo, configura-se como um processo dialético entre texto e leitor, no qual o conteúdo doutrinal é assimilado não apenas como conhecimento, mas como princípio ativo e efetivo de mudança interior.
A obra Ascética e Mística apresenta uma organização sistemática que reflete a tradição da teologia espiritual clássica. Sua estrutura é dividida em dois grandes blocos doutrinários — a teologia ascética (teologia sobre a firme disciplina) e a teologia mística (teologia do indecifrável) —, os quais se desdobram em capítulos temáticos que acompanham o desenvolvimento progressivo da vida interior.
3.1 – Parte I: Teologia Ascética
A seção sobre ascética compreende os fundamentos da vida espiritual e os meios ordinários de santificação. Os capítulos estão organizados de forma a conduzir o leitor desde a conversão inicial até a maturidade nas virtudes cristãs. Os principais temas abordados incluem:
- Fundamentos da vida espiritual: natureza da graça, finalidade da vida cristã, papel da vontade e da liberdade.
- Combate espiritual: luta contra o pecado, domínio das paixões, tentação e vigilância.
- Prática das virtudes: fé, esperança, caridade, humildade, obediência, mortificação e pureza de intenção.
- Meios de santificação: oração vocal e mental, exame de consciência, direção espiritual e frequência aos sacramentos.
Essa parte da obra tem caráter formativo-pedagógico, sendo destinada à purificação da alma e à conformação da vontade aos princípios evangélicos.
3.2 – Parte II: Teologia Mística
A seção sobre mística trata das etapas superiores da vida espiritual, caracterizadas pela ação direta da graça e pela experiência da união com Deus. Os capítulos abordam:
- Graças místicas: contemplação infusa, dons do Espírito Santo, consolações e aridezes espirituais.
- Fenômenos extraordinários: êxtases, visões, locuções interiores, discernimento dos espíritos.
- União: estado de perfeição, abandono à vontade divina, vida em Deus.
Essa parte da obra exige maior maturidade espiritual e teológica, pois trata de experiências que ultrapassam a capacidade discursiva e requerem discernimento e o acompanhamento de um diretor espiritual.
3.3 – Considerações Didáticas
A divisão temática da obra permite sua utilização tanto em contextos formativos (seminários, noviciados, cursos) quanto em estudos acadêmicos de teologia e literatura religiosa. A progressão dos capítulos visa conduzir o leitor da disciplina ascética à contemplação mística, ao menos no conhecimento teórico, respeitando o ritmo da graça e a liberdade interior, no nível prático.
A liberdade interior corresponde à capacidade do sujeito de pensar e agir de forma coerente, sem submissão a pressões externas ou condicionamentos sociais. Constitui-se como um estado de autonomia psíquica, em que o indivíduo identifica e supera limitações internas, como medos, impulsos ou vícios. Essa liberdade depende do desenvolvimento da consciência, da autorreflexão e do autoconhecimento. Epicteto e Viktor Frankl evidenciam que, mesmo sob coerções severas, o ser humano mantém a faculdade de decidir sua postura diante dos fatos. Portanto, a liberdade interior, que também pode ser nomeada como independência intelectual, é um componente de radical importância no que tange ao caminho ascético-místico.
4 – Considerações Finais
A obra Ascética e Mística é um manual de teologia espiritual estruturado em duas partes complementares: a disciplina espiritual e a união mística com Deus. Sua contribuição se dá na sistematização clara e didática dos percursos da vida espiritual, com base em fundamentos doutrinários da tradição cristã.
O estilo adotado, marcado por clareza expositiva e uso controlado de simbolismo teológico, favorece a leitura educacional. O texto mantém alinhamento com tratados clássicos da espiritualidade, como os de São João da Cruz e Fray Luis de León, ao mesmo tempo que apresenta organização e linguagem adequadas à formação pastoral e acadêmica.
A articulação entre ascese e mística, ou seja, entre firme disciplina e união mística, entre educação do corpo e elevação espiritual, representa o eixo da proposta espiritual desenvolvida na obra, contribuindo para sua permanência como referência nos estudos teológicos e literários.
A citação de Karl Rahner — “o cristão do futuro será um místico ou não será cristão” — reforça o valor da obra, independentemente da linha teológica e pastoral (moderna ou tradicional) adotada pelos mais variados grupos dentro do catolicismo.
Referências:
RAHNER, Karl. O cristão do futuro será um místico ou não será cristão. In: ____. Espiritualidade e liberdade. São Paulo: Paulus, 2005.
TIMONER, Gerard Francisco. A linguagem mística como subversão: entre o inefável e o simbólico. In: Mística e Teologia: desafios contemporâneos e contribuições. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2013. p. 78–83.
VELASCO, Juan Martín. El fenómeno místico: estudio comparado. Madrid: Trotta, 2000.
¹Ana Paula Barros
Especialista em Educação Clássica e Neuro Educação. Graduada em Curadoria de Arte e Produção Cultural. Professora independente no Portal Educa-te (desde 2018). Editora-chefe da Revista Salutaris e da Linha Editorial Practica. Autora dos livros: Modéstia (2018), Graça & Beleza (2025).
Possui enfática atuação na produção de conteúdos digitais (desde 2012) em prol da educação religiosa, humana e intelectual católica, com enfoque na abordagem clássica e tomista.
Totus Tuus, Maria (2015)
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