Literatura Católica: A sombra do pai – A construção da figura de São José em perspectiva histórica e literária no romance de Jan Dobraczyński

by - quinta-feira, abril 08, 2021

 



A SOMBRA DO PAI: A CONSTRUÇÃO DA FIGURA DE SÃO JOSÉ EM PERSPECTIVA HISTÓRICA E LITERÁRIA NO ROMANCE DE JAN DOBRACZYŃSKI

Professora Ana Paula Barros¹



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Resumo

Este trabalho investiga a construção simbólica e literária da figura de São José na obra A sombra do Pai (1977), do autor polonês Jan Dobraczyński (acesse a obra aqui), à luz dos estudos literários e da tradição religiosa cristã. O romance histórico dá voz à figura silenciosa do pai terreno de Jesus, reconstruindo sua trajetória e espiritualidade em um contexto narrativo que une revelações místicas, tradição apócrifa e ficção. A análise considera o pano de fundo histórico do autor — marcado pela atuação política e religiosa durante a Segunda Guerra Mundial — e as influências espirituais que permeiam sua escrita. O objetivo é compreender como Dobraczyński transformou São José de personagem bíblico secundário em protagonista dramático, refletindo aspectos da teologia católica, do imaginário literário europeu e da redenção do cotidiano.


Palavras-chave: Literatura cristã; São José; Jan Dobraczyński; romance histórico; espiritualidade narrativa.



1. Introdução – A figura de São José como protagonista literário

Ao longo da tradição cristã, a figura de São José permanece envolta em silêncio e discreta devoção. Literariamente, esse silêncio foi quase sempre reproduzido, com poucas obras se dedicando a explorar sua personalidade. O romance A sombra do Pai (1977), do escritor polonês Jan Dobraczyński, representa uma inflexão significativa nesse panorama. A obra eleva São José à condição de personagem central, por meio de uma narrativa profundamente influenciada por fontes místicas e devocionais, como Santa Brígida da Suécia, Ana Catarina Emmerich e São Máximo, o Confessor.

Dentro dos estudos literários, o romance insere-se no gênero romance histórico religioso, articulando elementos de tradição, interpretação bíblica e ficção espiritual. Dobraczyński emprega estratégias narrativas que ressignificam o lugar simbólico de São José — deslocando-o da imagem de “vozinho” passivo para a de jovem justo e casto, ativo na construção do mistério da encarnação. O autor transforma o silêncio em matéria poética, dando-lhe função dramática e espiritual, ao configurar José como reflexo do Pai Celestial na Terra.

A escolha de se contar a história do nascimento de Cristo pelo prisma de José representa uma inversão focal, onde o narrador foca não no prodígio divino, mas no humano que o acolhe. Tal técnica contribui para uma leitura teológica e literária que valoriza o cotidiano, o gesto escondido e a fidelidade silenciosa. Trata-se de uma estética da contenção e da interioridade, na qual o personagem é construído pela tensão entre dever e afeto, vocação e renúncia — elementos típicos de uma narrativa edificante, cuja finalidade ultrapassa o enredo para tocar o leitor espiritualmente.

Além disso, o romance dialoga com o imaginário europeu do pós-guerra, onde figuras heróicas discretas (como São José) ganham relevância simbólica. Isso reflete o ethos do autor, cuja atuação humanitária na Segunda Guerra Mundial transparece na valorização da redenção pelo cotidiano — uma constante na obra.

Em suma, esta pesquisa parte da análise estética e simbólica da obra A sombra do Pai, inserida na tradição do romance religioso europeu, buscando compreender como a figura de São José foi reconstruída literariamente como protagonista espiritual e silencioso, que, mesmo escondido, é presença ativa e transformadora na história da salvação.






2. O autor e seu tempo – Contexto histórico 


A figura de Jan Dobraczyński ultrapassa os limites do escritor romancista para se inscrever como agente histórico. Sua trajetória — marcada pela participação ativa na resistência polonesa durante a Segunda Guerra Mundial e pelo acolhimento de crianças judias — imprime à sua obra um ethos de caridade operante e heroísmo silencioso. Dentro dos estudos literários, essa experiência de vida é compreendida como um vetor biografemático, onde elementos da vida do autor se projetam estética e simbolicamente na composição ficcional.

Sob esse enfoque, São José surge em A sombra do Pai como um possível alter ego ético de Dobraczyński: ambos atuam no anonimato, protegendo vidas, assumindo o peso do cotidiano e agindo sob o signo da obediência silenciosa. Ao escolher representar José como um homem comum — jovem, justo e preocupado — o autor não apenas rompe com a iconografia tradicional do velho guardião, mas também reconfigura os arquétipos heroicos, investindo-os de humanidade e afetividade.

O romance foi publicado em 1977, período posterior ao Concílio Vaticano II (1962–1965), que propôs uma "renovação" (que temos várias ressalvas a respeito) teológica e litúrgica, aproximando a fé da realidade concreta dos fiéis. Essa virada antropológica da Igreja teve reflexos profundos na literatura religiosa, incentivando autores a explorarem a espiritualidade encarnada, a santidade no cotidiano e o protagonismo de figuras até então secundárias, como José.

Neste contexto, o romance de Dobraczyński alinha-se ao movimento de literatura devocional moderna, que mistura narrativa histórica, espiritualidade e humanização de personagens bíblicos. Algo também presente na série recente, de 2019, The Chosen (que também reservamos ressalvas). A obra de Dobraczyński pode ser lida como uma resposta literária à busca por sentido e transcendência em um mundo marcado por guerras e crises ideológicas — especialmente na Polônia, que emergia das feridas do totalitarismo com forte influência do catolicismo social.

Do ponto de vista formal, o autor utiliza uma narrativa intimista e contemplativa, com foco em dilemas internos e escolhas morais. Essa estética do recolhimento e da interioridade é coerente com seu próprio percurso como defensor dos invisíveis e sobrevivente da brutalidade nazista. A história do José de Dobraczyński, portanto, é ao mesmo tempo teológica e política, espiritual e humana, uma alegoria da fé operante que transforma o mundo discretamente.



3. A realeza davídica e o contexto histórico do judaísmo no primeiro século


Na construção simbólica da personagem São José em A sombra do Pai, Jan Dobraczyński resgata uma verdade esquecida da tradição bíblica: José é descendente direto da linhagem de Davi, portanto, um príncipe da casa real israelita. Literariamente, essa condição é apresentada de forma velada, refletindo o paradoxo da realeza escondida: um homem comum, trabalhador e preterido que carrega em si a estirpe do Messias. Essa representação confere ao romance uma poderosa carga simbólica — José não apenas guarda Jesus, mas também encarna a dignidade real do povo eleito em meio à opressão romana.

Sob a ótica dos estudos literários, essa abordagem transforma José num herói silencioso e genealógico, cuja força dramática decorre não do poder, mas do sangue e da promessa ancestral. O autor evoca de forma sutil o imaginário messiânico que permeava o judaísmo do primeiro século: a expectativa de um libertador vindo da casa de Davi para restaurar a soberania de Israel. A cidade de Belém, palco do nascimento de Jesus, reforça esse vínculo: era a cidade de Davi, habitada majoritariamente por seus descendentes — o que torna ainda mais dramático o fato de José não ser recebido por seus próprios parentes, como aponta a narrativa.

Essa recusa se converte, na narrativa, num momento de solidão profética, onde José se une ao destino do Messias: também rejeitado, também oculto, também príncipe sem palácio. A obra, então, transfigura a genealogia em vocação espiritual, mostrando que o sangue davídico não serve à glória humana, mas à realização do plano divino. Dentro dos estudos literários, essa estratégia narrativa insere São José na galeria dos heróis involuntários, cujo valor é revelado não por ações épicas, mas por fidelidade silenciosa e senso de dever.

Os heróis involuntários são personagens que se tornam centrais ou transformadores dentro da narrativa não por desejo próprio de protagonismo ou glória, mas por serem conduzidos pelas circunstâncias, pela ética ou por uma vocação superior que os ultrapassa. Ao contrário do arquétipo clássico do herói épico que busca desafios e fama, o herói involuntário encarna valores como humildade, serviço e resistência silenciosa. Sua trajetória não é movida por ambição, mas por fidelidade àquilo que considera justo ou sagrado.

Em A sombra do Pai, São José é apresentado por Dobraczyński como um herói involuntário por excelência. Ele não escolhe ser o guardião do Messias; é designado para isso. Contudo, ao aceitar essa missão com dignidade, silêncio e sacrifício, transforma o cotidiano em santuário. Seu heroísmo não reside em feitos públicos, mas na capacidade de amar e proteger longe dos holofotes — uma grandeza construída dentro da obscuridade. Esse tipo de personagem provoca no leitor uma identificação profunda com o heroísmo do ordinário.


 Aspectos históricos relevantes:

  • Domínio romano da Judeia: marcado por tributação abusiva, repressão política e descontentamento popular, o que alimentava movimentos messiânicos.
  • Expectativa escatológica: várias correntes religiosas judaicas aguardavam um “Ungido” (Mashiach) libertador, com base nas profecias de Isaías e Ezequiel.
  • Fragmentação religiosa: o período pré-natalício de Jesus era marcado por disputas entre fariseus, saduceus, essênios e zelotas — todos com visões diferentes sobre política e espiritualidade.
  • Realidade cotidiana dos judeus pobres: os carpinteiros, como José, longe dos debates rabínicos, mas profundamente ligados à esperança messiânica.

Dobraczyński explora essa tensão histórica por meio da narrativa indireta, mostrando como José, mesmo distante dos conflitos públicos, carrega dentro de si a pressão de seu legado davídico. Ele não é apenas um pai adotivo, mas o herdeiro legítimo da promessa, responsável por dar ao Menino Deus uma genealogia que cumpre as Escrituras. Esse aspecto é tratado com sutileza no romance, reforçando o caráter sacrificial e profético de São José (quando é ele quem faz as orações ou é "aquele que se preocupa").

Ao integrar o contexto histórico ao drama pessoal, o autor constrói um personagem que vive o contraste entre sua origem real e sua vida simples. A história de José, neste sentido, torna-se uma alegoria da realeza divina escondida na pobreza humana, e pré-representa o servo-rei — aquele que reina por meio do serviço e da renúncia. Trata-se de um trabalho narrativo de alta voltagem simbólica, que converge teologia, história e literatura em uma única figura.




4. O romance como releitura espiritual 


Dividido em duas partes — “A esposa” e “O Filho” — o romance propõe não apenas uma crônica dos eventos bíblicos, mas uma imersão na jornada interior e afetiva de um homem que é chamado a viver o mistério da encarnação.

Do ponto de vista dos estudos literários, essa configuração pode ser lida como uma narrativa de formação espiritual (ou Bildungsroman místico), na qual o personagem principal passa por um processo de conversão do humano ao divino — sem perder sua dimensão existencial e cotidiana. Ao representar José como um homem jovem, casto e inquieto, Dobraczyński subverte os ícones clássicos da arte sacra, que preferem retratá-lo como idoso e passivo, e instala no romance uma tensão criativa entre amor carnal e renúncia transcendental.

O Bildungsroman (romance de formação) místico configura-se como um subgênero do romance de formação no qual o desenvolvimento do protagonista é marcado pelo crescimento e amadurecimento psicológico e moral, geralmente ao longo da juventude, sendo também impulsionado pela intervenção ou ação do divino.


Temas interessantes trabalhados na obra:


  • Castidade heroica (casamento josefino): o modelo de casamento apresentado é o casamento josefino, prática valorizada nos primeiros séculos cristãos. Literariamente, essa escolha reforça a dignidade do afeto sem erotização, marcando José como um herói da castidade.
  • Obediência silenciosa: O romance privilegia o silêncio como elemento dramático. José não é um personagem de discursos ou confrontos, mas de gestos, decisões silenciosas e contemplação ativa. Esse recurso narrativo aproxima o texto da tradição monástica.


5. Fragmentos da obra


"Estava mergulhado nessa corrente com seu silêncio, como pedra em meio à correnteza. Ele esperava, ainda que, verdade seja dita, não soubesse o que estava aguardando. Esperava aquilo que o silêncio iria dizer-lhe."


"Ele nunca acompanhava seus irmãos. Isto não queria dizer que as diversões não o atraíssem. Ainda era jovem. Tinha momentos de tentação. Os chamados do silêncio lutavam com os apelos do coração. Mas o silêncio terminava sempre por impor-se."


"Mas sei, por desgraça, que a imensa maioria de nossos irmãos que vivem naqueles países foi contaminada. Porque nosso mundo, José, está contaminado..."


"A proteção romana e a paz romana trazem segurança. E, não obstante, envenenam... Ali onde os nossos vivem entre estranhos, o mal os alcança com facilidade. Mas ameaça a todos nós, também aqui. Muitos sacerdotes dizem: desde que haja paz e possamos oferecer nossos sacrifícios ao Altíssimo, tudo está bem. Herodes não se intromete em nossas vidas, as fronteiras do reino alcançaram os limites do Reino de Davi. Os fariseus conspiram e se rebelam. Anunciam ao povo que é preciso assumir a luta para preservar a pureza. Sustentam que logo será dado o sinal. Recordam-nos a última profecia sobre o Messias. Mas, apesar de suas afirmações, mantêm estreitas relações com a corte. Alguns deles até conseguiram receber favores de Herodes. É difícil saber o que eles realmente perseguem. O povo já não sabe a quem escutar. Israel tornou-se um rebanho que perdeu o seu pastor..."


"Às vezes as palavras da Escritura se apresentavam de tal forma, que soavam como resposta. Às vezes, como chamados. E quando  lhe falava continuamente de seus sentimentos, muitas vezes, ouvindo a leitura dos versículos na sinagoga, encontrava neles um reiterado e afetuoso convite a esperar". 


"Até quando seria preciso ocultar o extraordinário debaixo do ordinário? Nos momentos de iluminação, tudo parecia ser tão simples... Mas os momentos de iluminação passavam e a vida apresentava suas exigências."


"A verdade é como o sol refletida em mil espelhos."


"Seja quem for, há de ser Aquele que nos foi enviado. Em cada profecia que há de passar pela boca dos homens, encerram-se, junto à vontade divina, algumas aspirações humanas. E acontece que umas e outras se realizam. Mas de maneira diferente. A vontade divina, conforme a previsão do Altíssimo; os desejos humanos, purificados de toda avidez humana."


"Crer significa aceitar aquilo que os olhos não viram...- dizia Baltasar- E já que é assim, temos que aceitar desde já a verdade do que iremos ver. Antes de levantar esta cortina , temos que nos livrar que toda decepção e dúvida. Temos de aceitar sem reservas tudo o que nos espera... Só assim se pode aceitar o chamado do Altíssimo. "




¹Ana Paula Barros

Especialista em Educação Clássica e Neuro Educação. Graduada em Curadoria de Arte e Produção Cultural. Professora independente no Portal Educa-te (desde 2018). Editora-chefe da Revista Salutaris e da Linha Editorial Practica. Autora dos livros: Modéstia (2018), Graça & Beleza (2025).

Possui enfática atuação na produção de conteúdos digitais (desde 2012) em prol da educação religiosa, humana e intelectual católica, com enfoque na abordagem clássica e tomista.

Totus Tuus, Maria (2015)




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1 comments

  1. Obrigada Ana por essa resenha, principalmente a que vc fez em áudio, foi através dela que me despertou o desejo de ler esse livro, gosto muito de historia assim, onde podemos formar bem o nosso imaginário, e com suas explicações ficou mais claro certos pontos do livro pra mim. É um livro belíssimo, no qual me encantou por demais, onde podemos de fato ver José se transformar em São José, ver também a Ss Virgem com sua doçura, silencio e confiança nos ensina muito, é um livro onde conseguimos imaginar a Família Santa, e nos espelhar. Muito obrigada. Paz e bem.

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Olá, Paz e Bem! Que bom tê-lo por aqui! Agradeço por deixar sua partilha.