Comentários sobre a Carta aos Filipenses por São João Crisóstomo

by - julho 24, 2020






Introdução

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HOMILIAS SOBRE A CARTA AOS FILIPENSES DE SÃO JOÃO CRISÓSTOMO,
PADRE DA IGREJA, ARCEBISPO DE CONSTANTINOPLA



Filipenses são os habitantes de uma cidade da Macedônia, cidade colonial, segundo Lucas, e tem o nome de Filipos, por causa de seu fundador (cf. At 16,12). Nesta cidade se converteu a negociante de púrpura, mulher influente, temente a Deus (cf. At 16,14- 15); nela o chefe da sinagoga aderiu à fé (cf. At 16,23ss); nela Paulo e Silas (At 16,22) foram açoitados; nela os magistrados, assustados, insistiram com eles para que saíssem (At 16,38.19); nela o anúncio do evangelho teve esplêndido começo. Paulo dá muitos e belos testemunhos a respeito deles, denominando-os sua “coroa” (Fl 4,1) e declara que eles muito sofreram, nesses termos: “Pois, da parte de Deus, vos foi concedida em relação a Cristo, a graça não só de crerdes nele, mas também de por ele sofrerdes” (Fl 1,29). No momento, porém, em que lhes escrevia, aconteceu que estava preso. Por isso afirma: “As minhas cadeias se tornaram conhecidas em Cristo por todo o Pretório” (Fl 1,13). Chama de “Pretório” o palácio de Nero. Esteve preso e foi libertado, como assinala na carta a Timóteo: “Na primeira vez em que apresentei a minha defesa ninguém me assistiu, todos me abandonaram. Que isto não lhes seja imputado. Mas o Senhor me assistiu e me revestiu de forças” (2Tm 4,16-17). Refere-se às cadeias em que se achava antes daquela defesa. É evidente que Timóteo então não estava presente. Ele assegura: “Na primeira vez em que apresentei a minha defesa ninguém me assistiu”. Escrevendo desse modo, manifesta-lhe o fato; se ele já o soubesse, não lhe teria escrito assim. Mas, ao escrever essa carta, Timóteo se achava junto dele. Demonstra-o por aquilo que diz: “Espero, no Senhor Jesus, enviar-vos logo Timóteo” (Fl 2,19) e ainda: “Espero, pois, enviá-lo, logo que puder ver como irão as coisas comigo” (Fl 2,23). Tinha sido libertado das cadeias, e novamente preso depois que esteve com eles. Quanto às palavras: “Mas, se o meu sangue for derramado em libação, em serviço da vossa fé” (Fl 2,17), não o diz como se já houvesse acontecido, porém: “Se isto acontecer, alegrome”, a fim de corrigi-los do abatimento por causa de suas cadeias. Revela que a morte então não era iminente, porque assevera: “Tenho fé no Senhor de que eu mesmo possa logo ir até aí” (Fl 2,24) e ainda: “Convencido disso, sei que ficarei e continuarei com todos vós” (Fl 1,25).


Os filipenses, a fim de obter notícias, lhe haviam enviado Epafrodito, que lhe trouxera uma doação em dinheiro. Efetivamente, tinham-lhe muita afeição. Sobre esta remessa, ouve como ele se exprime: “Agora tenho tudo em abundância; tenho de sobra, depois de ter recebido de Epafrodito o que veio de vós” (Fl 4,18).


Mas, então, eles ouviram dizer que Paulo se achava preso (se, de fato, a informação de que Epafrodito, de menor irradiação que Paulo, estivera doente, muito mais saberiam acerca de Paulo); e era justo que ficassem inquietos. Por isso, no início da carta acrescenta muitas consolações acerca das cadeias, mostrando que não somente não deviam perturbar-se, mas antes alegrar-se. Em seguida, também exorta à concórdia e à humildade, ensinando que nisso consistia a mais segura proteção, e assim facilmente poderiam vencer os inimigos. Efetivamente, não é lamentável para os mestres estarem presos, e sim a falta de concórdia entre os discípulos. Aquela ocorrência trazia progresso ao evangelho, esta última causava a ruína. 

E nós também disso cientes, e diante de tais mostras de amor, sejamos dignos de tais exemplos, pela prontidão em sofrer por Cristo. Atualmente, porém, não há perseguições. Em consequência, se não é possível de outro modo, imitemo-los incansavelmente nas boas obras e não acreditemos já termos feito tudo quando uma ou duas vezes praticamos a esmola. Temos de praticá-la a vida toda. Não basta, na verdade, agradar a Deus apenas uma vez, e sim constantemente. Efetivamente, o corredor, depois de perfazer por dez vezes duplo curso, se desiste no último, perde tudo. Também nós, se começamos a praticar boas obras, e por fim relaxamos, perdemos tudo, arruinamos tudo. Escuta aquela proveitosa exortação da Escritura: “A misericórdia e a fidelidade não te abandonem” (Pr 3,3). Não diz: Age assim uma, duas, três, cem vezes, mas sempre. “Não te abandonem.” Não diz: “Não as abandones”, e sim: “Não te abandonem.” Desta forma revela que nós precisamos delas, não elas de nós, e ensina que tudo façamos por agarrá-las. “Ata-as ao pescoço” (Pr 3,3). Assim como um menino rico que tem um ornamento de ouro no pescoço, de forma alguma o tira, usando-o como sinal de sua alta origem, também a esmola sempre nos cerque, mostrando que somos filhos de um Pai misericordioso que faz o sol levantar-se sobre maus e bons (Mt 5,45). Mas, não acreditam os infiéis? Acreditarão, contudo, se persistirmos. Se, de fato, virem que temos compaixão de todos e representamos tal mestre, admitirão que assim agimos a fim de imitá-lo. E isto não devemos fazer simplesmente, mas com atenção e firmeza. “A esmola e a fidelidade sejam em ti verdadeiras”, diz-se. Bela expressão: “verdadeira”! Não se origine de rapina, ou roubo. Não se trataria de fidelidade, nem de verdadeira esmola... procuremos que nossa alma tenha bela aparência.

Nada mais maligno que o diabo. Ele em toda parte envolve os seus sequazes em trabalhos infrutuosos, e os dilacera. Não só não suporta que obtenham os prêmios, mas sabe sujeitá-los à punição. Efetivamente, não apenas institui como lei a pregação do evangelho, mas igualmente o jejum e a virgindade, de tal sorte que não apenas os priva da recompensa, mas submete os seus seguidores a uma grave imposição. A este respeito foi dito numa passagem: “Têm a consciência cauterizada” (1Tm 4,2). 

Por conseguinte, exorto-vos, agradeçamos a Deus por tudo, por nos ter aliviado os fardos, e aumentado as recompensas. São premiados os nossos esposos castos; entretanto, os que praticam a castidade entre eles não têm parte nestes prêmios e os hereges que assumem a virgindade são sujeitos a pena igual à dos que vivem na impureza. Qual o motivo? Não agem com reta intenção, e têm em vista caluniar as criaturas de Deus e a sua inefável sabedoria. Não sejamos, portanto, indolentes. Deus nos entregou a combates moderados, não fatigantes. Nem por isso os menosprezemos. Quando os hereges intensificam seus fardos insensatos, que defesa teremos se não queremos assumir os menores, que ocasionam maior retribuição? O que há de pesado, de esmagador nos mandamentos de Cristo? Não podes guardar a virgindade? Ser-te-á lícito casar-te. Não podes renunciar a todos os teus bens? É possível assistir os necessitados com algo do que tens. Diz a Escritura: “O que para vós sobeja, suprirá a carência deles” (2Cor 8,14). Talvez pareça pesado, digo, desprezar as riquezas, e vencer a concupiscência da carne. Aquelas práticas, porém, não causam dano algum, não exigem nenhum esforço. Que esforço, dize-me, é necessário para não falar mal, nem simplesmente caluniar? Que força exige não invejar o bem alheio? Que esforço para não ser arrastado pela vanglória? Suportar a tortura é fortaleza. Reclama fortaleza exercitar-se na sabedoria, força suportar a penúria, força pelejar com a fome e a sede. Quando nada disso te acontece, e ao contrário te é lícito usufruir dos próprios bens, como convém a um cristão, seria pesada obrigação não cobiçar o alheio? Antes, todos os vícios não se originam senão da cobiça, da dependência relativa aos bens terrenos. 

Se, porém, tens por nada as riquezas e a glória deste mundo, não invejarás os seus possuidores. Uma vez, porém, que pasmas diante destas coisas, tens admiração e aspiras por elas, também importunam-te os assaltos da inveja, e ainda os da vaidade. Tudo isso provém de amares os bens da vida presente. 

Tens inveja de alguém porque é rico? E não seria ele digno de compaixão e de lágrimas? Imediatamente replicarias rindo: Eu é que mereço lágrimas, não ele. Digno de lástima és tu, não por seres pobre, e sim por te julgares digno de compaixão. Lastimamos os que não sofrem de mal algum e se impacientam, não por não padecerem, mas porque apesar de não estarem atacados de doença alguma, julgam estar. Por conseguinte, responde-me. Se, acaso, um homem já sem febre, agita-se e revolve-se, deitado na cama apesar de estar são, não é mais lastimável do que os febricitantes, não por uma febre que ele na realidade não tem, mas porque de nada sofre e imagina sofrer? E tu és digno de lástima porque te julgas merecedor de compaixão, não pela pobreza. Pela pobreza, devias reputar-te feliz.

Ouçam estas palavras os ricos; ou antes, não os ricos, mas os impiedosos. De fato, aquele não era castigado por ter sido rico, mas porque não se compadecera. É possível que os ricos compassivos se tornem partícipes de todo bem. No entanto, ele a nenhum outro divisou senão aquele indigente, a fim de que entendesse, ao se lembrar do que fez, ser justo o que padecia. Não existiam, de fato, inúmeros outros pobres que eram justos? Somente lhe apareceu aquele que jazia à sua porta, a fim de ensinar, a ele e a nós, como é bom não confiar nas riquezas. A pobreza não impediu o pobre de obter o reino; de nada adiantou a riqueza ao rico para escapar da geena. Desde quando o homem se chama indigente? Desde quando tem o nome de pobre? Não é, não é indigente o que nada tem, mas o que deseja muito; não é rico o possuidor de muitos bens, mas o que de nada precisa. Que adianta, com efeito, possuir toda a terra, e viver mais infeliz do que aquele que nada tem? A opção, não a abundância ou a falta de dinheiro, faz os homens ricos ou pobres. 

Queres, ó pobre, tornar-te rico? Basta querer e ninguém o impedirá. Despreza os bens deste mundo; considera-os um nada, quais realmente são; rejeita a ambição das riquezas, e enriqueceste! Rico é quem não ambiciona enriquecer; o que não quer empobrecer é pobre. Assim como é doente quem estando com boa saúde inquieta-se com seu estado, não o que suporta a doença com tanta alegria como se estivesse com perfeita saúde, assim também é pobre quem não tolera a pobreza, mas no meio das riquezas considera-se mais pobre que um miserável qualquer, e não o que suportando a pobreza vive com mais alegria do que os ricos, no meio das riquezas; na verdade, ele é o mais rico de todos. 

Mordedura alguma na alma grande e sábia acarreta qualquer dor da presente vida: nem inimizades, nem acusações, nem suspeitas, nem perigos, nem ciladas. Refugiada de certo modo em alto cume, é inacessível a todos os ataques das regiões inferiores da terra. Tal era a alma de Paulo, que alcançara um pico mais elevado do que todos os cumes, em sua sabedoria espiritual, a verdadeira filosofia...Um homem de aço, pode ser golpeado mil vezes, jamais mudará; assim é Paulo.


Mas, se o viver na carne me dá ocasião de trabalho frutífero, não sei bem o que escolher. 

Por isso, ninguém me diga: “Se no além está tua verdadeira vida, por que Cristo te deixa na terra?” “É um trabalho frutífero”, responde. É possível usar da presente vida como convém, não vivendo como a maioria. Isso, diz ele, a fim de não pensares que esteja caluniando a vida terrestre, nem afirmes: “Se a vida presente para nada de bom serve, por que não nos suicidamos, não nos matamos? “De modo algum”, responde. Aqui também é possível lucrar, se não vivermos esta vida e sim uma diferente. Mas, pode-se perguntar: “E isso frutifica?” “Sim”, replica.

E agora, onde ficam os hereges? Eis agora o que dizem eles: “Viver segundo a carne, isso é trabalho frutífero; e, portanto, fruto do trabalho”. Qual o teu “trabalho frutífero”? “Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus” (Gl 2,20). Por conseguinte, o meu é “trabalho frutífero”. E “não sei bem o que escolher”.

Oh! que profunda sabedoria! De que maneira também exclui o desejo da vida presente, contudo não a rejeita! A afirmação: “O morrer é lucro” exclui o desejo; quanto à locução: “Se o viver na carne me dá ocasião de trabalho frutífero” demonstra a necessidade da vida presente. De que forma? Se a emprego conforme convém, se produz frutos, porque se é infrutífera, não chega a ser vida. Por conseguinte, a árvore que não produz fruto, semelhante à árvore seca, nós a depreciamos e jogamos ao fogo. Ainda, a vida pertence à categoria das coisas indiferentes; viver bem ou mal depende de nós. Não odiemos a vida, uma vez que existe vida e excelente; e se a empregamos mal, nem assim a acusemos. Por quê? Porque não é ela a causa disso, mas a livre escolha dos que a empregam mal. Na verdade, Deus te fez viver porque podes viver para ele; tu, porém, a vives segundo a malícia do pecado, e assumes toda a responsabilidade da questão.

“É melhor”, afirma, “partir e ir estar com Cristo”. A morte em si é indiferente. Não é um mal, portanto, a morte em si, mas é um mal ser castigado depois da morte. Nem é um bem a morte, mas é um bem ao que parte “ir estar com Cristo”. O estado posterior à morte enfim é um bem ou um mal. Por conseguinte, não lastimemos simplesmente os mortos, nem nos alegremos simplesmente acerca dos vivos. O que faremos? Lastimemos os pecadores não somente ao morrerem, mas também enquanto viverem. Alegremo-nos, no entanto, relativamente aos justos, não somente vivos, mas também mortos. Os primeiros, de fato, mesmo estando vivos morreram, estes, contudo, apesar de morrerem estão vivos. Os primeiros aqui na terra precisam da misericórdia, porque ofendem a Deus; os outros se partem da terra são felizes porque vão ter com Cristo. Os pecadores, onde quer que estejam, estão longe do Rei; por isso merecem pranto. Os justos, no entanto, na terra ou no além, estão junto do Rei; lá, muito mais perto, não em figura, nem através da fé, mas face a face (cf. 1Cor 13,12).

Em consequência, não lastimemos simplesmente os que morrem, mas os que morrem em pecado; são dignos de choro, de luto, de lágrimas. Que esperança há, dize-me, em partir carregado de pecados, uma vez que lá não há remissão de pecados?

Chora amargamente, geme em casa, sem testemunhas oculares. Isso é solidariedade, e traz proveito também para ti. Quem assim chora o próximo, cuidará bem mais de não cair em idênticas faltas. De resto, o pecado ser-lhe-á pavoroso. Chora os infiéis, chora os que em nada se distinguem deles, os que partem sem o batismo (a “iluminação”), a confirmação (o “selo”). Estes são dignos de lamentação, de lágrimas. Ficarão fora do palácio do rei, com os réus, os condenados. Efetivamente, “em verdade vos digo: quem não nasce da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus” (Jo 3,5). 


 A estes todos choremos em particular e em público; mas com compostura, com dignidade, sem exibição. Choremos não um dia, nem dois, mas durante toda a vida! Prantear assim não constitui paixão absurda, mas verdadeira afeição; do contrário, seria paixão insensata, que logo se extingue. A originária do temor de Deus, dura sempre. Por conseguinte, deploremo-los, auxiliemo-los à medida de nossas forças, excogitemos uma ajuda, pequena embora, conquanto possível. Qual e de que modo? Nós próprios rezaremos por eles, e exortaremos a que por eles se façam preces, frequentemente dando aos pobres na intenção deles. Esta ação proporciona certo alívio. Escuta as palavras que Deus profere: “Protegerei esta cidade por amor de mim mesmo e do meu servo Davi” (2Rs 20,6). Se tanto pode apenas a lembrança do justo, o que não poderão as obras em seu favor? Não é em vão que os apóstolos determinaram que seja feita memória dos defuntos nos tremendos mistérios. Eles sabiam que se retiraria muito lucro, muita utilidade. Pois, quando o povo inteiro está de pé com as mãos erguidas, o clero completo, e é apresentada a tremenda vítima, como nossas súplicas não haverão de tornar-lhes Deus propício?

Isso, porém, acerca dos fiéis que partem; quanto aos catecúmenos, não fazem jus a tal alívio, mas carecem de todos esses auxílios, exceto um só. E qual é? Dar aos pobres, em sufrágio por eles; esse ato proporciona-lhes certo alívio. Efetivamente, Deus quer que nos ajudemos mutuamente. Por que ordenou que se reze em prol da paz e prosperidade de todo o mundo? Por que em favor de todos os homens (cf. 1Tm 2,1ss)? Apesar de entre esses todos se encontrarem ladrões, violadores de túmulos e larápios, principalmente réus de inúmeros crimes, rezamos por todos sem exceção, porque é possível que haja dentre eles algum que se converta. E assim como oramos por esses vivos, que não se distinguem dos mortos, é também lícito rezar por eles.


Jó oferecia sacrifícios pelos filhos e obtinha-lhes a remissão dos pecados. Disse: “Talvez tenham cometido pecado em seus corações” (Jó 1,5). É deste modo que importa preocupar-se com os filhos. Não falava como tantos atualmente: “Deixo-lhes uma propriedade”. Não disse: “Obtenho-lhes honrarias”. Não declarou: “Vou adquirir-lhes poder”. Não disse: “Vou comprar umas terras”. Ao invés, o quê? “Talvez tenham cometido pecado em seus corações.” Qual a vantagem de todos aqueles bens que devem ficar aqui na terra? Nenhuma. “Vou tornar-lhes propício o Rei do universo”, diz ele, “e enfim, coisa alguma lhes faltará”. “O Senhor é meu pastor, nada me falta” (Sl 23,1). 


Esta a grande riqueza, este o tesouro. Se temos o temor de Deus, nada nos falta. Mas, se o não tivermos, mesmo que possuirmos um reino, somos os mais pobres dos homens. Nada de semelhante àquele que teme o Senhor. “O temor do Senhor excede a tudo” (Eclo 25,14). Queiramos adquiri-lo, por ele tudo façamos; e se tivermos de perder a vida, e se o corpo tiver de ser trucidado, não recuaremos. Façamos tudo para obter este temor. Desta forma seremos os mais ricos de todos, e alcançaremos os bens futuros em Cristo Jesus nosso Senhor, ao qual com o Pai e o Espírito Santo glória, poder, honra, agora e sempre e nos séculos dos séculos. Amém


A morte


Nada mais feliz que a alma de Paulo, porque não existe outra mais generosa. Mas é oportuno dizer o oposto acerca dos demais: Nada mais fraco, mais mísero do que nós. Efetivamente, todos estremecemos diante da morte, uns por causa da multidão de seus pecados, entre os quais estou eu, outros por amor à vida e covardia, entre os quais possa nunca me encontrar! 

São carnais os que a temem. Justamente por aquela partida que provoca estremecimento em todos, Paulo roga e anela, dizendo: “Partir é muito melhor”. Não sei bem o que escolher”.

Novamente ensina-lhes a moderar seu modo de pensar, a atribuir tudo a Deus, e denomina uma “graça”, um dom, uma dádiva sofrer por Cristo. Não vos envergonheis deste dom. E é realmente mais admirável que ressuscitar os mortos e fazer milagres. Pois, nesse caso sou devedor, no outro o devedor é Cristo. Por conseguinte, não apenas não devemos nos envergonhar, mas antes alegrar-nos, estando de posse de tal dom. Ele dá às virtudes o nome de carismas, não em sentido próprio, como relativamente aos outros carismas. Na verdade, os outros vêm totalmente de Deus, enquanto nas virtudes também nós tomamos parte. Mas visto que igualmente aqui a parte principal é de Deus, diz-se que o todo é dele; não, porém, que se queira eliminar o livre-arbítrio, e sim fazer-nos discretos e agradecidos.


E em outra passagem: “E o vosso zelo tem servido de estímulo à maioria das Igrejas” (2Cor 9,2). Vês o elogio aos homens daquele tempo? Nós, ao invés, não sofremos bofetadas, nem ferimentos, nem fomos sujeitos a injúrias ou a dano material. Eles eram cheios de zelo, e na peleja todos davam testemunho; quanto a nós, deixamos esmorecer o amor por Cristo. E ainda ve-mo-nos na necessidade de denunciar o estado atual das coisas. E o que fazer? Não quero, mas a tal sou forçado. Se é possível, porém, calar e nada dizer, e com o silêncio desaparecem as ações, é lícito calar; se for o contrário (não somente não desaparecem quando nos calamos, mas até se tornam piores), é forçoso falar. Aquele que denuncia as faltas, se não consegue outra coisa, não deixa o mal ir avante. Não existe alma tão sem pudor e ousada que, ao ouvir assíduas repreensões, não core, não diminua tanta maldade. Existe, na verdade existe, mesmo nos que perderam a vergonha, algum pudor. Deus implantou em nossa natureza o pudor. Quando não basta o temor para nos corrigir, preparou muitos outros caminhos para abandonarmos o pecado. Por exemplo, a crítica dos homens, o medo das leis estabelecidas, a ambição da glória, a aquisição de amizades. Todos esses caminhos nos levam a evitar o pecado. Repetidas vezes, não é por causa de Deus, mas por vergonha, e o que não se faz por Deus, é feito por causa dos homens. Em primeiro lugar, aprendemos a não pecar; depois, recebemos orientação de como agir, enfim, por causa de Deus. 

Aliás, por que razão Paulo exorta à paciência os que querem vencer os inimigos, não por temor de Deus, mas pelo medo de represálias? “Agindo desta forma estarás pondo brasa na cabeça dele” (Rm 12,20). Entretanto, quer principalmente que se pratique a virtude. Por isso, eu dizia existir em nós certo senso de vergonha. Temos naturalmente muita inclinação à virtude. Por exemplo, todos os homens por natureza sentem compaixão e nenhum outro bem se encontra naturalmente em nós como este.


Por esse motivo, temos o direito de perguntar por que este sentimento está tão arraigado em nossa natureza que facilmente derramamos lágrimas, curvamo-nos, inclinamo-nos à compaixão. Ninguém é por natureza brilhante, não há quem esteja isento de vanglória, ninguém superior à emulação; mas por natureza todos se inclinam à compaixão, por mais cruel ou impiedoso que seja. E não é de espantar o fato de o demonstrarmos aos demais; mesmo das feras nos compadecemos, de tal forma é inata a compaixão em nós. Até diante de um leãozinho sentimos algo, mais ainda relativamente a nossos semelhantes. “Olha quantos inválidos!” – exclamamos muitas vezes, sabendo que é suficiente para nos induzir à compaixão.



Nada tão excelente, nada tão amável quanto um mestre espiritual; supera em tudo a benevolência de um pai natural. “Nada fazendo por competição.” Roga e fala sobre o modo conveniente de realizá-lo: “Nada fazendo por competição e vanglória”. Conforme sempre digo, é esta a causa de todos os males. Daí provêm as lutas e as disputas, daí as invejas e as rivalidades, daí o arrefecimento da caridade: visarmos à glória da parte dos homens, sermos escravos de honrarias da multidão.



Nada tão alheio a uma alma cristã como a arrogância. Digo arrogância, e não franqueza, ou bravura. Pois estas têm suas características. Diferenciam-se essencialmente entre si. De fato, uma coisa é a humildade, outra, porém, o servilismo, a adulação, os afagos. E, se quiserdes, de todos posso apresentar exemplos:

Parece que os contrários entre si brotam inseparáveis, como a cizânia e o trigo, os espinhos e a rosa. Talvez apenas as crianças facilmente se iludam, porém os homens, no verdadeiro sentido da palavra, experientes no cultivo espiritual, sabem na verdade distinguir o bem do mal. Vamos apresentar exemplos hauridos da Escritura. O que seria, então, a adulação, o servilismo, os afagos? Siba adulou a Davi em momento inoportuno e cometeu um crime contra seu próprio senhor (cf. 2 Sm 16,1ss). Mais ainda Aquitofel a Absalão (2Sm 16,15-17). Não assim Davi, que era humilde. Os pérfidos são aduladores. Por exemplo, quando os magos dizem: “Ó rei, vive para sempre!” (Dn 2,4). Encontramos também nos Atos muitos fatos semelhantes acerca de Paulo, quando se dirigia aos judeus, sem adulação, mas humilhando-se; ele sabia também mostrar franqueza, como ao dizer: “Irmãos, embora nada tenha feito contra nosso povo, nem contra os costumes dos pais, fui aprisionado em Jerusalém e entregue às mãos dos romanos” (At 27,28). Constitui prova de que suas palavras provinham da humildade a maneira como os censurou em seguida, nesses termos: “É bem verdade o que o Espírito Santo disse: em vão escutareis, não compreendereis; em vão olhareis, não vereis” (At 28,25-26: cf. Is 6,9-10). Notas a bravura? Vê também qual a coragem de João Batista diante de Herodes, ao declarar-lhe: “Não te é lícito possuir a mulher de Filipe, teu irmão” (Mc 6,18). 


Queres ver ainda palavras de humildade e de liberdade? Escuta Paulo a falar: “Quanto a mim, pouco importa ser julgado por vós ou por um tribunal humano. Eu também não me julgo a mim mesmo. Verdade é que a minha consciência de nada me acusa, mas nem por isso estou justificado” (1Cor 4,3-4). Tal é a atitude que convém ao cristão. E ainda: “Quando alguém de vós tem rixa com outro, como ousa levá-la aos injustos, para ser julgada, e não aos santos?” (1Cor 6,1).


Queres ver a adulação dos judeus insensatos? Escuta-os a dizer: “Não temos outro rei a não ser César!” (Jo 19,15).  


Queres constatar a humildade? Ouve ainda a Paulo, que diz: “Não pregamos a nós mesmos, mas a Jesus Cristo Senhor. Quanto a nós mesmos, apresentamo-nos como vossos servos por causa de Jesus” (2Cor 4,5). 


Em resumo, para reunir tudo num só tipo, a audácia existe quando alguém se irrita e encoleriza sem motivo, por vingança ou injusta ousadia; franqueza, contudo, e coragem, quando se enfrentam perigos e morte, e olha-se com desdém a amizade ou a inimizade, por causa de Deus. Novamente adulação e servilismo quando alguém procura ganhar a outrem por meios inconvenientes, ou no intuito de obter por ciladas alguma vantagem temporal. Humildade, ao invés, seria fazer o que apraz a Deus e descer de alta posição, a fim de conseguir algo de grande e admirável. Se o entendemos, somos felizes, no caso de o praticarmos. Não basta ter entendido, pois diz o Apóstolo: “Porque não são os que ouvem a Lei que são justos, mas os que cumprem a Lei” (Rm 2,13). Ainda mais: o conhecimento nos condena se não for acompanhado de atos ou boas obras. Tendo em mira, portanto, escaparmos da condenação, procuremos a prática a fim de alcançarmos os bens prometidos, pela graça e a benignidade de nosso Senhor Jesus Cristo.


No intuito de exortar os filipenses à humildade, apresentou-lhes Cristo por modelo. E não somente neste lugar, mas ainda ao dissertar sobre a caridade para com os pobres, exprime-se de maneira semelhante: “Com efeito, conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que por causa de vós se fez pobre, embora fosse rico” (2Cor 8,9). Efetivamente, nada persuade melhor uma alma grande e sábia à prática do bem como estar ciente de que desta maneira assemelha-se a Deus. Que estímulo há igual a este? Nenhum. Paulo, disso bem consciente, exortando-os à humildade, primeiro aconselha, acrescenta uma súplica, depois fala com energia: “Estais firmes num só espírito” (Fl 1,27) e: “Para eles é sinal de ruína, mas, para vós, de salvação” (Fl 1,28). Enfim, apresenta este motivo: “Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus. Ele tinha a condição divina, e não considerou o ser igual a Deus como uma rapina, mas esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo”. 



Mas, parece, o respeito humano em nós pode mais que o temor da geena e dos futuros castigos. Por isso, tudo está invertido. As questões políticas são tratadas diariamente com maior solicitude, para não haver omissão; as espirituais, porém, não têm importância alguma para nós.  



Cientes disso, não nos entreguemos a calúnias, mas aos benefícios; não perscrutemos curiosamente os males alheios, mas analisemos os nossos; cogitemos nas boas obras dos outros, e pensemos nos nossos pecados, e assim agradaremos a Deus. Pois, encarando os pecados alheios, e nossas boas obras, teremos duplo prejuízo. Em vista daqueles exaltamo-nos com orgulho, e destas, caímos na negligência. De fato, ao se pensar que este ou aquele pecou, facilmente se peca também; e ao cogitar alguém que ele próprio agiu bem, facilmente torna-se orgulhoso. Quem, ao invés, entrega ao esquecimento suas boas obras, considerando apenas seus pecados, sem investigar curiosamente os pecados dos outros, e sim as boas obras deles, recolhe múltiplo lucro. Escuta de que modo: Se alguém vê que este ou aquele agiu bem, inflama-se de idêntico zelo; ao verificar que ele próprio peca, torna-se humilde e modesto. Se agirmos desta forma e assim nos orientarmos, poderemos alcançar os bens prometidos, através da graça e benevolência de nosso Senhor Jesus Cristo, ao qual com o Pai e simultaneamente com o Espírito Santo glória, poder, honra, agora e para sempre e nos séculos dos séculos. Amém.


Nada de tal modo torna vãs as boas obras, nada provoca soberba, como a lembrança do bem que fizemos. Produz dois males: faz-nos mais negligentes e exalta em arrogância.


“Mas apresentai a Deus todas as vossas necessidades pela oração e pela súplica, e em ação de graças.” Há um só consolo: “O Senhor está próximo”. E: “Eis que eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos!” (Mt 28,20). Eis que existe ainda outro consolo, um remédio que pode livrar de toda tristeza, de qualquer ocorrência e de todas as coisas molestas. Qual é? A ação de graças em todas as circunstâncias. A oração, segundo o Apóstolo, não se restringe às preces, mas também é ação de graças por aquilo que possuímos. Como pode pedir bens futuros, quem não é grato pelos passados? Mas em “todas as vossas necessidades”, diz ele, a saber, em todas a circunstâncias, “pela oração e pela súplica”. Aliás, devemos agradecer por tudo, mesmo pelo que parece adversidade. Então, observamos a verdadeira gratidão. O pedido é exigido pela natureza das coisas, a ação de graças, porém, origina-se de uma alma reconhecida e intimamente ligada a Deus. Tais orações encontram junto de Deus reconhecimento; das outras, não quer saber. Assim deveis pedir, assim serão bem apresentadas vossas súplicas diante de Deus. Deste modo, tudo se realizará para nosso bem maior, mesmo quando não o percebemos. A circunstância de não o percebermos é sinal de que seguramente alcançaremos grande bem. “Então a paz de Deus, que excede toda a compreensão, guardará os vossos corações e pensamentos, em Cristo Jesus.”


Tudo o que é “honroso”. O que é honroso denota a virtude quando atua do exterior, o que é “puro” origina-se da alma. Ele quer dizer: A ninguém dar escândalo, nem ocasião de censura. Tendo se referido a tudo o que é “honroso” a fim de não se julgar que é simplesmente diante dos homens, acrescentou: “o que é virtuoso ou de qualquer modo mereça louvor”, nisso pensai, “isso praticai!”. Quer que continuamente sejamos assim, preocupemo-nos com tais coisas, disso cogitemos. Pois, se conservarmos a paz entre nós, Deus também estará conosco. Se, porém, criamos revolta, o Deus da paz não estará conosco. Pois, nada hostiliza a alma com o vício; e nada, ao contrário nos restabelece em segurança, como a paz e a virtude. Comecemos, portanto, a prestar o que nos compete e atrairemos também a Deus para o nosso lado. Deus não é um Deus de guerra e pugna. Desiste, portanto, da guerra e da luta, tanto contra ele quanto contra o próximo. Sê pacífico para com todos. Pensa quais são aqueles a quem Deus dá a salvação: “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,9). Esses tais sempre imitam o Filho de Deus; imita-o também tu. Sê pacífico. Quanto mais o irmão te combater, tanto maior será a tua recompensa. Ouve, portanto, o profeta: “Com os que odeiam a paz, somos pacíficos” (Sl 120,7).


Isto é virtude, isto é mais que pensamento humano, e atrai a Deus para perto de nós. Nada tanto alegra a Deus como o esquecimento das injúrias; livra-te dos pecados, apaga os crimes. Ao combatermos e lutarmos, distanciamo-nos de Deus. Das lutas, de fato, originam-se as inimizades; das inimizades seguem-se as lembranças das injúrias. Corta a raiz, e o fruto não aparecerá. Desta forma, aprendemos a desprezar as coisas presentes. Não existe, efetivamente, não existem pelejas nas coisas espirituais, mas as refregas e invejas que vires são oriundas das questões temporais: das ambições, da inveja, da vanglória começa toda disputa. Se conservarmos a paz, aprenderemos a desprezar as coisas desta terra. Alguém roubou-te os bens? Mas em nada te prejudicou, conquanto não roube as riquezas superiores, diz-se. Lesou tua glória? Não, contudo, a que tens junto de Deus, mas a de nenhum valor; propriamente não é glória, mas da glória tem o nome, ou melhor, é coisa inglória. Roubou-te a honra? Não foi, porém, a tua, mas a sua própria. Na verdade, o injusto não causa dano, mas ele próprio é prejudicado. Assim também o que arma ciladas ao próximo, primeiro arruína a si próprio; o que cava uma fossa para o próximo, nela cai. Por conseguinte, não armemos mutuamente ciladas uns aos outros, a fim de não sermos nós mesmos atingidos. Quando suplantamos a glória dos outros, pensemos que prejudicamos a nós mesmos, porque é mais para nós mesmos que planejamos insídias. Na verdade, talvez prejudiquemos junto dos homens àquele que o conseguirmos; a nós mesmos fazemos o mal junto de Deus, irritando-o. Não danifiquemos a nós mesmos. Pois, quando fazemos injustiça ao próximo, a nós mesmos a fazemos; igualmente, fazendo-lhe o bem, a nós próprios beneficiamos.



Extraído do livro: Patrística, volume 27, volume 3. 




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