Estudiosidade 2: Por onde Começar?
Uma vocação
O Padre Sertillanges inicia sua abordagem sobre a Vida Intelectual¹ apontando que o intelectual é um consagrado e que a vida de estudo é uma vocação, um chamado.
A vocação é um chamado único, que somente a pessoa chamada escuta e que, normalmente, a faz parecer louca aos olhos dos demais. Portanto, a vocação não pode ser vista por nenhuma outra pessoa, e este é o grande dilema de toda busca vocacional. Esta reflexão sempre me faz pensar nas cartas escritas por Rainer Maria Rilke a um jovem poeta que lhe pediu conselhos e uma avaliação da sua poesia. Rainer, como um bom mestre, lhe adverte e orienta sobre diversas coisas; trocam cartas por longos anos, mas nunca lhe respondeu sobre sua poesia, pois ele mesmo diz ser isso impossível.
Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: "Preciso mesmo escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "preciso", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão.²
Este trecho traduz bem o que é uma vocação. É um constante ‘preciso’. Não se relaciona com as pessoas, as honras, os elogios ou as cusparadas, com estar ou não na moda. É uma necessidade para existir e ser você mesmo. Isso é uma vocação. E se encaixa muito bem na chamada Vida Intelectual. Basta se perguntar, na hora mais monótona da sua vida, ‘preciso mesmo estudar a razão das coisas?’, ‘preciso mesmo entender, ao menos em parte, o caos?’, ‘preciso falar sobre isso, escrever sobre isso?’. Se a resposta for um forte ‘preciso’, é uma vocação.
Tal vocação está presente em níveis na vida de todo cristão, já que algumas vocações pedem este chamado de forma mais ou menos radical (um professor, pais de família, padres ou religiosos, ou qualquer pessoa que se vê responsável por instruir). Cada um, dentro do seu ciclo, tem certa responsabilidade de estudo para bem servir. No entanto, a Vida Intelectual, da qual trato aqui, está realmente direcionada a responder a um chamado que gera uma necessidade existencial na qual se ancoram todas as outras atividades vocacionais. O estudo é sempre um dever para quem instrui, seja quem for, mas a Vida Intelectual é uma dedicação, uma consagração do tempo, da vida.
Não espere ser compreendido
Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante horas, é a isso que é preciso chegar. Estar só, como a criança está só.²
A maioria das pessoas tem uma grande inclinação a querer ser compreendida… Bem, se você deseja estudar, habitue-se a uma certa solidão. A solidão dos que veem. Não é muito cômoda, realmente, mas ao menos faz parte da vocação; por isso, não é de todo angustiante. No entanto, as pessoas, no geral, não entendem o estudo. Mesmo nesta terra brasileira que diz valorizar imensamente o estudo, este é infinitamente visto como alvo de preconceito, até mesmo dentro do clero. Estudar é visto como emburrecedor em alguns ciclos. Portanto, acostume-se: as pessoas têm aversão ao saber. Por isso, iniciei este texto com a reflexão a respeito do ‘preciso’. Somente se for um chamado (ou uma dedicação pelo bem dos que lhe são confiados) você poderá passar por estas pequenas aversões com algum sorriso no rosto.
Temas
Interessantemente, a preocupação da maioria se resume aos temas de estudo, sendo que deveriam começar pelo seu interior. Pela resposta firme: ‘preciso’.
Quanto aos temas, é importante que sejam temas de interesse. Afinal, todas as temáticas são objeto de estudo: o amor, a amizade, a vida, a morte, a religião, a beleza, a feiura, a história, as emoções, a vida comum, os costumes; enfim, tudo pode ser estudado. E um assunto leva a outro.
Da mesma forma que não é possível lhe dizer se possui uma vocação ou não, também não é possível lhe dizer por onde começar exatamente. Existem aqueles que orientam Platão, outros alguns livrinhos. Mas o melhor é, na hora mais pacata do seu dia, se perguntar: ‘Eu me interesso pelo quê nesta vida?’ Esta área te levará a outras e, daqui a uns anos - cinco ou dez - você verá que, muito provavelmente, todos os assuntos que lhe interessam estão ligados a um fio condutor, a um tema mestre.
No entanto, é sempre importante partir de uma boa e sólida base catequética, visando proteger a mente com a verdade da fé e os ensinamentos da Igreja: a sã Doutrina Católica, as Sagradas Escrituras e os Comentários dos Doutores sobre as mesmas.
"Tudo quanto é velocidade não será mais do que passado, porque só aquilo que demora nos inicia."
"O tempo não é uma medida. Um ano não conta, dez anos não representam nada. Ser artista não significa contar, é crescer como a árvore que não apressa a sua seiva e resiste, serena, aos grandes ventos da primavera, sem temer que o verão possa não vir. O verão há de vir. Mas só vem para aqueles que sabem esperar, tão sossegados como se tivessem na frente a eternidade."²
Tempo de Cultivo
Quero lhe implorar para que seja paciente com tudo o que não está resolvido em seu coração e tente amar as perguntas como quartos trancados e como livros escritos em língua estrangeira. Não procure respostas que não podem ser dadas porque não seria capaz de vivê-las. E a questão é viver tudo. Viva as perguntas agora. Talvez assim, gradualmente, você sem perceber, viverá a resposta num dia distante.²
Estudar é cultivar. É um tempo gasto em subir nos ombros dos gigantes para assim conseguir ver melhor; é buscar enraizar-se à beira do rio, buscando receber uma boa nutrição. Esse processo leva uma vida, por isso se diz ‘vida de estudo’, não ‘fase de estudo’. Por isso, também, o Padre Sertillanges chama essa atitude de consagração, pois toma tempo.
Este tempo nos faz fugir de opinadores e dos fragmentos desconexos; não é possível estudar a partir de fragmentos, de assuntos desconexos. Assim como nos situa longe de idealismos românticos e de realismos acachapantes.
Quem oferece tal propriedade de discernimento é o tempo de estudo. Tempo este que se relaciona a bem estudar os autores e livros, não na quantidade de livros, necessariamente.
Estudar bem se refere à capacidade de síntese e de absorção, depois à capacidade de interligar os temas estudados entre si (neste ponto, a maioria tem uma dificuldade considerável).
No entanto, o tempo de cultivo também se refere à vida espiritual.
Vida Espiritual
Um dito católico diz que ‘o doutor derrota o demônio’. Estudar é o ato de buscar a Verdade. Por isso, a virtude da estudiosidade nos livra das curiosidades vãs que embotam a mente e corrompem a alma em falsas realidades.
Assim, muito ingênuo é quem estuda, buscando a Verdade e não se fortalece numa vida espiritual e moral adequada.
Basta observar a história e vemos como vários pensamentos anticristãos se estabeleceram por uma ‘linha intelectual’, e isso só foi possível porque a ‘linha intelectual católica’ se tornou fraca, inexistente ou covarde. No entanto, muito provavelmente, sua fraqueza se originou na falta de vida de oração e não na vida de estudo.
A vida de oração é o adubo da vida de estudo. É nela que a árvore recebe os raios do sol, os clarões de lucidez, os vislumbres da realidade. É também pela vida de oração que podemos usufruir dos Dons do Espírito Santo que recebemos no Santo Batismo: o entendimento para ver as realidades com clareza e precisão, a ciência para vislumbrar os acontecimentos terrenos com acuidade, adquirindo uma clareza ‘sócio-política’, e a sabedoria para vislumbrar a direção (não os motivos) dos atos da Providência na História.
Por isso, antes de começar, certifique-se de sua vida espiritual, se está exposto e disposto aos raios de luz da Inteligência Divina que tudo rege e orienta. Só assim poderá estudar qualquer tema com a certeza de que o Senhor lhe guiará e protegerá. Também é preciso um comprometimento com a retidão moral. Um estudioso católico busca se firmar no terreno das virtudes, converter o estudo em atos elevados e dirigidos para a eternidade. O sábio é o virtuoso.
Referências
1- SERTILLANGES, A-D. A Vida Intelectual. É Realizações, 2010. Disponível em: https://amzn.to/43P15Q4
2- RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. L&PM, 2006. Disponível em: https://amzn.to/3CJVChe
3- MESCHLER, Mauricio. O Dom de Pentecostes. Cultor de Livros, 2016. Disponível em: https://amzn.to/3PpmB9B
3 comments
Excelente reflexão 🙏
ResponderExcluirExcelente, Ana.
ResponderExcluirÓtima reflexão, Ana. Proporcionou vários insights, especialmente sobre "vida" e não "fase" de estudos. Gratidão por sua vida e por seu trabalho.
ResponderExcluirOlá, Paz e Bem! Que bom tê-lo por aqui! Agradeço por deixar sua partilha.