Estudiosidade 1| O Analfabetismo funcional
Introdução
Em abril de 2017, durante a Brazil Conference em Harvard, o filósofo Olavo de Carvalho afirmou que 80% dos formandos de universidades brasileiras são analfabetos funcionais. Ao final, ele foi contestado por uma integrante da plateia, que apresentou um dado muito diferente: o índice entre os universitários seria de apenas 1%. Objetivamente, quem está certo? A resposta curta é esta: nenhum dos dois.
De forma geral, o analfabetismo funcional costuma ser definido como a incapacidade de compreender e interpretar textos ou fazer operações matemáticas com um grau mínimo de complexidade.
Hoje, as avaliações que medem os graus de analfabetismo incluem quatro ou cinco categorias (geralmente divididas entre analfabetismo total e níveis como alfabetização rudimentar, básica, intermediária e proficiência). Somente as duas primeiras categorias são consideradas analfabetismo funcional.
O Instituto Paulo Montenegro, que é referência no assunto e mede regularmente o nível de alfabetização dos brasileiros, sustenta que 4% dos que cursam ou cursaram uma faculdade são analfabetos funcionais. O percentual na população geral fica em 27%.
Por outro lado, o Instituto Paulo Montenegro identificou que apenas 22% dos universitários ou graduados são proficientes em leitura. Uma matemática simples leva à conclusão de que quase 80% dos universitários brasileiros não atingiram o nível ideal de alfabetização. Isso é diferente da definição clássica de analfabetismo funcional. Mas, como os números evidenciam, a situação é ruim¹.
Proficiência é ter a capacidade e habilidade de ler e compreender.
Eu me lembro do período em que lecionava em sala de aula (até 2017). Sempre fui professora de adultos, alunos de cursos técnicos (sim, eu estava lá quando a Dilma desenvolveu uma obsessão pelo Pronatec, lembra? Pois é… foi traumático). E como você, professor, já sabe, esse número (80%) não é ilusório, é a pura realidade. Se não desenharmos, não existe compreensão. Esta é a raiz do surgimento da necessidade de professores que precisam fazer praticamente um espetáculo de circo para “prender a atenção do aluno” para que ele “compreenda ludicamente”. O TikTok já existia em algumas salas de aula, acredite.
Características do Analfabeto Funcional
"O analfabeto funcional lê todas as sentenças em sentido absoluto, material e chapado, como se fossem juízos atomísticos num manual de química. É insensível às nuances, imprecisões e ambiguidades que tornam possível a linguagem literária. Objeções levantadas por um analfabeto funcional são irrespondíveis, pois versam sobre objetos da sua própria invenção, alheios àquilo que ele imagina questionar."²
O analfabeto funcional, e todos nós somos ou já fomos, parece ter uma nuvem mental que o impede de ler e entender o que está escrito. Como não possui a capacidade de realmente receber a mensagem do autor, constrói interiormente uma série de interpretações, baseadas exclusivamente em sua vida e visão; é a interpretação de texto baseada no próprio umbigo. O resultado são as interpretações fragmentadas, baseadas na emoção que o leitor tem ao, forçosamente, adaptar algo que leu ou ouviu à sua vida e buscar trechos de auto confirmação. Como a interpretação é puramente emocional e forçosamente adaptada a uma realidade diferente da apontada pelo autor do texto, qualquer objeção apontada pelo analfabeto funcional não tem resposta, dado que ele inventou uma interpretação, criou um cenário de interpretação.
É um monólogo numa sala cheia de espelhos distorcidos.
"Os analfabetos funcionais ajudam uns aos outros a não perceber que o são."²
O resultado dessa Babel interpretativa é a incapacidade generalizada de aprender.
O Aprendizado
Para aprender, é preciso se abrir a uma outra percepção. É preciso se esforçar para entender a apresentação de um outro pensamento fora do nosso. É a capacidade de absorver outro prisma, de atravessar um portal e ser apresentado a um outro feixe de luz de conhecimento. Obviamente, isso se torna impossível sem a capacidade de realmente ler o pensamento do autor. O primeiro passo é receber o pensamento do autor e, depois, num segundo momento, verificar algo do ensinado na própria vida, se existir, sem fazer adaptações forçadas.
"A lógica é a arte de pensar; a gramática, a arte de inventar símbolos e combiná-los para expressar pensamento; e a retórica, a arte de comunicar pensamentos de uma mente a outra, ou de adaptar a linguagem à circunstância."³
Os textos expressam a linha de pensamento de uma pessoa; a linguagem literária possui nuances. Quando um autor escolhe uma palavra e não outra, quando evidencia uma sentença com vírgulas, quando termina um pensamento com reticências, cada uma dessas escolhas tem um motivo e leva uma mensagem ao leitor. Ser capaz de interpretá-las, de ler os pensamentos contidos nas palavras, isso é o que chamamos proficiência na leitura.
O segundo passo é ser capaz de sintetizar os ensinamentos apresentados. O poder de síntese torna o aprendizado parte de nós mesmos, como uma mão ou um pé.
O terceiro passo se refere a interligar ou contrapor leituras/conhecimentos já sintetizados, criando uma grande teia de conhecimento mental.
Existem aqueles que possuem dificuldades distintas em todos ou em um desses passos.
Cabe aqui a humildade de reconhecer as próprias limitações e buscar ordenar cada um desses pontos. O que, sim, pode levar alguns anos.
É normal, no entanto, ao iniciar um estudo ou ao ler algo novo, se sentir um pouco burro. É normal e sadio. Nos parece que a mente une as letras, mas não entende o conteúdo. Isso é reduzido quando retrocedemos um pouquinho e lemos coisas mais simples sobre o tema, buscando assim nos acostumar com o vocabulário, até que, finalmente, o “texto difícil” se torna menos complicado. Já que o “difícil”, normalmente, é interpretar o pensamento do autor, ler verdadeiramente.
Ler ou escutar uma aula de forma emotiva produz um arquivo mental distorcido e ilusório.
Portanto, alguns comportamentos remediadores se tornam necessários:
- perseverança,
- ler os textos, livros e escutar as palestras na íntegra,
- detectar os pontos-chave do pensamento do autor e não dos próprios pensamentos,
- contrastar os ensinamentos do autor com os próprios pensamentos,
- intercalar ou contrapor o apresentado com outros autores.
O resultado desse processo é a ampliação da teia de conhecimento e não uma autoconfirmação das próprias emoções e percepções da realidade.
Referências
1- CASTRO, Gabriel de Arruda. Nem 1%, nem 80%: a real taxa de analfabetismo funcional entre universitários. Gazeta do Povo, 2017.
2- CARVALHO, Olavo. Analfabetos funcionais, 2017
3- JOSEPH, M. O Trivium: as artes liberais da Lógica, Gramática e Retórica: entendendo a natureza e função da linguagem. São Paulo: É Realizações, 2008 in Sérgio, Maurício & Souza. O Método de Educação Clássica e os Paradigmas do Modelo Educacional Brasileiro, 2020.
2 comments
Interessante perceber esse gradiente e verificar que nem o Olavo, nem a pessoa na plateia, detinham a resposta precisa; de uma ou de outra forma, ainda assim, a olhos nus, o ambiente cultural brasileiro é devastador, um deserto dentro e fora de universidades e escolas. É tanto que aqueles com inclinação intelectual devem cuidar da própria educação. Com alguma sorte, refugiam uns aos outros.
ResponderExcluirPonto interessante também mencionado é o vício comum (por infortúnio, preguiça ou inépcia), ao "ensopar" os próprios pensamentos como se do autor fossem conjecturas embotadas durante ou após a leitura. Sem a capacidade de discernir o encadeamento e a tessitura, seja qual for a manifestação do texto. De fato, é aí onde está a necessidade da perseverança referida, entre as outras importantes sugestões para apreensão e uma boa leitura.
Paciência, humildade e busca por uma assimilação verdadeira.
Grato por compartilhar.
Ennio
De fato, um artigo muito bem escrito. Infelizmente, nós estamos perdidos se a nossa esperança vem das escolas e universidades, mas como Deus é bom, ele levanta pessoas iluminadas para nos ensinar de verdade e nos impulsionar a buscar a verdade.
ResponderExcluirOlá, Paz e Bem! Que bom tê-lo por aqui! Agradeço por deixar sua partilha.