O uso do macabro na arte — A Família Addams
O uso do macabro na arte — A Família Addams
Profª Ana Paula Barros
1. INTRODUÇÃO
A palavra macabro tem origem no francês macabre, amplamente disseminado a partir da expressão danse macabre (“dança da morte”), recorrente nas manifestações artísticas europeias da Idade Média, especialmente em murais, gravuras e textos religiosos que ilustravam a morte conduzindo personagens de distintas classes sociais rumo ao túmulo. Alguns autores associam essa expressão ao latim medieval chorea Machabaeorum (“dança dos Macabeus”), em referência aos mártires judaicos descritos no livro bíblico Macabeus (saiba mais aqui), cujos sofrimentos teriam sido convertidos em alegorias visuais de dor e enlevo. Neste contexto o macabro é usado como representação. Com o passar dos séculos, o termo passou a designar representações que evocam o sombrio, o grotesco, o inquietante e a morte, consolidando-se como elemento característico da literatura gótica, do cinema de horror e das artes visuais voltadas à linguagem visual do desconforto.
Dança da Morte, c.1499 (detalhe) · Bernt Notke
Art Museum of Estonia, Tallinn, Estonia
"A Dança da Morte" (gravura de Micheal Wolgemut, xilogravura em Crônica de Nuremberg de Hartmann Schedel, 1493).
A Família Addams, produzida em 1938 pelo cartunista Charles Addams para a revista The New Yorker, é uma sátira à família tradicional estadunidense, utilizando humor mórbido e uma linguagem visual gótica para subverter convenções sociais e exaltar o que é visto como, ou entendido como, incomum. Desde sua origem nos quadrinhos, a franquia expandiu-se para diversos formatos midiáticos, incluindo adaptações cinematográficas, televisivas, teatrais e, mais recentemente, a série Wandinha, lançada pela plataforma Netflix.
A presente pesquisa propõe-se a analisar a trajetória da Família Addams como produção cultural que articula discursos sobre alteridade e pertencimento, com foco nas peças teatrais e na recepção da série Wandinha. A popularidade dessas obras é compreendida como expressão da valorização de personagens “excluídos especiais”, que desafiam normas sociais e encontram caminhos para si mesmos em suas singularidades — fenômeno também observado em franquias contemporâneas como Harry Potter, Jogos Vorazes e Divergente.
Além da exclusão social por fatores de imagem e aparência — culturais ou comportamentais — é possível observar que muitos desses personagens representam, metaforicamente, indivíduos com desvios de conduta ou transtornos de comportamento. A neurociência tem demonstrado que tais desvios podem estar associados a padrões diferenciados de desenvolvimento cerebral, especialmente em áreas relacionadas à empatia, tomada de decisão e regulação emocional. Estudos indicam que o comportamento antissocial pode ter origem em fatores neurobiológicos, sendo, portanto, não apenas uma questão moral ou social, mas também clínica e cognitiva.
Nesse cenário, propõe-se investigar como os produtos culturais ligados à Família Addams se conectam com jovens que se reconhecem em histórias protagonizadas por personagens socialmente deslocados, com atitudes e perfis fora do esperado. Muitos desses personagens representam indivíduos que desafiam padrões, lidam com conflitos internos ou têm comportamentos considerados inadequados, mas que apontam para outras formas de inteligência. No entanto, cabe também salientar o aspecto artístico desempenhado pelo feio e pelo mórbido na peça, para desencadear o efeito estético — ou seja, a apreensão pelos sentidos — capaz de suscitar alguma reflexão, como também alguns possíveis malefícios na construção do imaginário coletivo.
2. ORIGEM E EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA ADDAMS
A Família Addams foi criada em 1938, quando o cartunista norte-americano Charles Addams publicou suas primeiras tiras na revista The New Yorker. Com humor mordaz e ares sombrios, os personagens foram concebidos como uma inversão satírica da família tradicional estadunidense, representando um núcleo aristocrático, excêntrico e indiferente às convenções sociais. A crítica implícita ao ideal de normalidade consolidou os Addams como ícones do grotesco.
Ao longo das décadas, a franquia passou por múltiplas adaptações, mantendo como eixo temático o estranho como gosto — uma “faceta do gosto pessoal”. A primeira série televisiva, exibida entre 1964 e 1966 pela rede ABC, transformou os personagens em figuras populares, embora tenha suavizado o tom sombrio das tiras originais para se adequar ao formato de comédia de situação (sitcom). Nos anos 1990, os filmes dirigidos por Barry Sonnenfeld reacenderam o interesse pela franquia, com destaque para a atuação de Christina Ricci como Wandinha.
A transposição para o teatro ocorreu com o musical The Addams Family, estreado na Broadway em 2010. Com letras de Andrew Lippa e libreto de Marshall Brickman e Rick Elice, a peça explora os conflitos geracionais e afetivos da família, utilizando humor ácido, ambientação gótica e elementos visuais que, como esperado, apresentam o macabro como recurso estético (leia-se: recurso de apreensão pelos sentidos). No Brasil, o musical teve montagens de grande sucesso em São Paulo e no Rio de Janeiro.
A mais recente reinterpretação da franquia se deu com a série Wandinha (Wednesday, 2022), dirigida por Tim Burton (o mesmo diretor de Edward Mãos de Tesoura, que possui uma crítica muito similar à da franquia Família Addams) e distribuída pela plataforma Netflix. A produção desloca o foco narrativo para a filha mais velha. Alguns temas como personalidade, comportamento desviante e pertencimento/deslocamento são amplamente abordados. Ambientada na Escola Nunca Mais, a série apresenta Wandinha como uma adolescente intelectualmente brilhante, emocionalmente contida e socialmente deslocada. O resultado é atingir um público que se reconhece em personagens que desafiam padrões normativos, que se sentem deslocados — o que, atualmente, abrange praticamente todas as pessoas. A linguagem visual gótica, o humor sombrio e os conflitos internos da protagonista contribuem para a consolidação da série como fenômeno cultural entre pessoas que se identificam com a narrativa, somado aos já desencadeados movimentos subculturais da Dark Academia, que dialoga com séries escolares como Harry Potter, Wandinha e Divergente.
A linguagem visual denominada Dark Academia configura-se como uma subcultura contemporânea que valoriza o conhecimento clássico, a erudição e a atmosfera acadêmica tradicional, com forte influência da arquitetura gótica, da literatura europeia e da moda das décadas de 1930 e 1940. Essa linguagem visual associa-se à romantização do ambiente universitário, à introspecção e ao culto à melancolia intelectual. Embora seja frequentemente lembrada como expressão de refinamento cultural, a Dark Academia também tem sido alvo de críticas por certa tendência à idealização de comportamentos emocionalmente disfuncionais em nome da genialidade.
Isso posto, podemos considerar que, além do discurso proferido pela linguagem visual adotada nessas franquias que abordam o meio escolar, existe uma forte classificação de grupos nessas obras. Todas as produções com alta adesão a esse estilo apresentam um padrão de escolas com casas, grupos e "panelas". Ou seja, existe uma veiculação que aborda instantaneamente o desejo de pertencimento — razão pela qual as casas da franquia Harry Potter nunca saem de moda. O roteiro possibilita uma adesão imediata a uma personalidade ligada a uma subcultura apresentada no mundo ficcional.
3. RELAÇÃO COM O PÚBLICO DE HARRY POTTER E DIVERGENTE
As franquias Wandinha, Harry Potter, Jogos Vorazes e Divergente compartilham um fator narrativo recorrente: o protagonista marginalizado que, ao longo da trama, descobre possuir habilidades ou características que o tornam singular e, por vezes, essencial para a resolução de conflitos centrais. Essa estrutura narrativa, amplamente difundida na literatura e no audiovisual, estabelece uma conexão emocional, já que todos, de alguma forma, são desejosos do protagonismo e de certa nota de especialidade.
Ambientes escolares como Hogwarts, em Harry Potter, e a Academia Nunca Mais, em Wandinha, funcionam como espaços simbólicos de iniciação. Em Jogos Vorazes e Divergente, esse processo é intensificado pela divisão da sociedade em facções, cada uma com valores específicos, o que reforça a ideia de que a identidade individual pode ser moldada e validada por grupos com os quais se compartilham afinidades.
A linguagem visual gótica presente em Wandinha, aliada aos temas de mistério, magia e rebeldia, estabelece pontes simbólicas com o universo de Harry Potter, especialmente no que tange à ambientação sombria, à presença de criaturas fantásticas e à estrutura de casas e competições escolares. Esses elementos enriquecem o universo ficcional. A recorrência de profecias, personagens ambíguos e reviravoltas narrativas reforça o vínculo entre essas obras, consolidando um imaginário coletivo com a assimilação de que o gosto macabro não está atrelado a uma pessoa ruim, desassociando o belo do bom no sentido material da interação. Algo deste tipo está presente em obras como O Retrato de Dorian Gray e O Médico e o Monstro, que traçaram a delicada relação entre o belo e o bom e ainda a difícil tarefa de nomear o que é a beleza, mostrando que a beleza atrelada à bondade pode não ter nenhuma relação com a aparência e a imagem.
O uso do macabro, neste contexto, é retirado do ofício de gerar afastamento do mal, mas assume o papel de indicar que existe uma distinção entre a aparência do horrendo e macabro e o próprio horrendo. Parece haver uma tentativa, muito interessante, de gerar reflexão pelo estranho sobre o que é a beleza, levando-nos, por um lado, à definição de que a beleza é imaterial. Por outro lado, no que se refere à franquia Família Addams e outras, também existe a preocupação de identificar o que de fato é o horrível. Dessa forma, sempre existe uma personagem que personifica a beleza dos anos 50 (que remete à perfeição dos comerciais de margarina), que, na verdade, é uma pessoa ruim, e que encarna, portanto, a aparência bela atrelada ao mal; enquanto os outros representam a aparência estranha atrelada ao bem.
Para alguns, isso pode ser interpretado como uma inversão imposta pela indústria cultural, mas, na verdade, trata-se de uma reflexão, como já mencionado, presente em outras obras. É evidente que, embora essa expressão visual seja útil, ela gera uma nova cadeia de pensamentos restritivos, uma vez que, normalmente, a mente humana tende a estabelecer padrões. O resultado dessa veiculação pode ser a descrença em pessoas que aparentam ser bonitas e boas, além de uma confiança cega em indivíduos que não seguem os padrões normativos, o que pode levar a certa leniência. No entanto, apesar do risco envolvido, é oportuno desvincular a beleza da percepção imposta pela indústria acerca de imagem e aparência — ou ainda da ideia de aparência como reflexo de moralidade.
Ainda é possível observar que, na franquia Família Addams, há sempre, em algum momento, um personagem que personifica o horrendo propriamente dito, evidenciando dentro da trama aquilo que é de fato considerado horrível — ou seja, o feio e o mal internos — em contraste com a beleza e o bem interiores.
Outro aspecto interessante é que assim como a série Vincenzo a franquia Addams parece tender a retratar as "nuances do mal", em que o menos mal passa a ser visto como o bom. O que permanece dentro da proposta de desconforto característico do uso do macabro na arte.
4. PRODUÇÃO CULTURAL, NEURODIVERGÊNCIA E DESVIO DE CONDUTA
Obras como Wandinha, Harry Potter e Divergente não apenas retratam personagens com traços de marginalidade social, mas também incorporam elementos que podem ser interpretados como manifestações simbólicas de neurodivergência e desvio de conduta. Nesse sentido, tais produções funcionam como dispositivos narrativos que tensionam os limites entre o normal e o patológico, o aceitável e o transgressor.
O conceito de neurodivergência, cunhado pela socióloga Judy Singer, refere-se a indivíduos cujo funcionamento neurológico difere do padrão considerado neurotípico, incluindo condições como o Transtorno do Espectro Autista (TEA), o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), a dislexia, entre outros. A abordagem da neurodiversidade propõe uma ruptura com os modelos medicalizantes, reconhecendo essas variações como expressões legítimas da diversidade humana. No campo da produção cultural, personagens com traços neurodivergentes são frequentemente retratados como excêntricos, geniais ou emocionalmente complexos, contribuindo para a construção de narrativas que geram reflexão e ampliam o repertório simbólico da sociedade. Entre eles estão Sherlock Holmes, Harry Potter e Malfoy (os dois quebram regras com facilidade e possuem certa raiva impulsiva), Wandinha e a Família Addams, Sheldon, Vincenzo.
Por outro lado, o desvio de conduta, tradicionalmente associado a comportamentos antissociais ou transgressivos, também tem sido ressignificado nas obras culturais. Em Wandinha, por exemplo, a protagonista apresenta traços de frieza emocional, sarcasmo extremo e aversão a normas sociais — características que poderiam ser interpretadas como desvios de conduta sob uma ótica psiquiátrica clássica. No entanto, a narrativa reconfigura esses traços como formas de inteligência emocional alternativa, criatividade e resistência à conformidade. A neurociência contemporânea tem demonstrado que comportamentos considerados desviantes podem estar relacionados a padrões diferenciados de desenvolvimento cerebral, especialmente em áreas ligadas à empatia, tomada de decisão e regulação emocional. É evidente que tais hipóteses enfrentam grandes obstáculos quando o assunto é, por exemplo, a psicopatia ou os desvios de conduta que colocam a sociedade em risco. Tais narrativas podem facilitar — embora seja necessário, inevitavelmente, algum período de confusão — a distinção social entre quadros de neurodivergência e gradações de desvios de conduta, já apontados de forma embrionária em outras obras.
A representação desses perfis na cultura pop não apenas contribui para a visibilidade de grupos historicamente destinados ao deslocamento, como também promove uma reflexão crítica sobre os mecanismos de afastamento social. A linguagem visual do estranho, do grotesco e do macabro, presente em produções como Família Addams, opera como recurso simbólico narrativo para questionar os vínculos entre aparência, moralidade e valor social. Vemos, portanto, o deslocamento — atualmente tão estudado — do uso da arte, e do macabro mais especificamente, não mais como representação, mas como narração (mais sobre isso clique aqui).
Nesse contexto, a produção cultural assume um papel pedagógico e político, ao oferecer narrativas que provocam reflexão sobre normalidade e anormalidade. No entanto, é possível que ocorra um enamoramento pela anormalidade, até que ela se torne o novo normal e voltemos a esse debate — que, na verdade, é pendular — sem que nenhum resultado reflexivo real aconteça. Além disso, o uso dos gostos de determinados grupos pode se tornar instrumento de adesão política específica, em que as produções são apenas formas de mobilizar as massas por meio de seus gostos. Apesar desses riscos e outros já apontados, parece ser inevitável considerar a necessidade de uma reflexão sobre essa temática, na esperança de que não se torne instrumento de mobilização partidária irreflexiva das massas.
Profª Ana Paula Barros
Especialista em Educação Clássica e Neuro Educação. Graduada em Curadoria de Arte e Produção Cultural. Professora independente no Portal Educa-te (desde 2018). Editora-chefe da Revista Salutaris e da Linha Editorial Practica. Autora dos livros: Modéstia (2018), Graça & Beleza (2025).
Possui enfática atuação na produção de conteúdos digitais (desde 2012) em prol da educação religiosa, humana e intelectual católica, com enfoque na abordagem clássica e tomista.
Totus Tuus, Maria (2015)
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