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Thomas Cole, A Viagem da Vida: Infância



Análise Histórico-Literária da Obra Caminho, de São Josemaria Escrivá

Professora Ana Paula Barros¹



1. Introdução

Desde sua primeira publicação, em 1934, sob o título Consideraciones espirituales, a obra se mostrou uma bússola espiritual para milhares de pessoas que buscavam integrar o catolicismo e a vida cotidiana no mundo moderno.

Com seus 999 pontos de meditação, organizados de forma concisa e reflexiva-provocadora, Caminho não se apresenta como um tratado teológico tradicional, mas como um companheiro silencioso que convida o leitor a um exame profundo da própria vida prática; é um manual de teologia prática.

Este trabalho tem como propósito não apenas apresentar uma análise acadêmica da obra, mas também compreender os caminhos que ela traça dentro da tradição espiritual cristã. Para isso, será realizado um estudo que contempla seu pano de fundo histórico-literário, sua estrutura interna e os temas que permeiam sua proposta de vida espiritual, na tentativa de perceber como a obra ecoa, ainda hoje, na busca humana por sentido e plenitude.




2. Panorama Histórico e Literário


Na leitura de Caminho, é impossível desassociar seus breves e contundentes pontos espirituais do contexto histórico em que foram concebidos. Na Espanha convulsionada da década de 1930 — marcada por tensões políticas, ideológicas e religiosas — a figura de São Josemaria Escrivá surge como alguém que percebe a urgência de uma catolicidade enraizada na vida comum. Seu olhar atento à realidade do cotidiano fez surgir uma proposta "nova sem ser nova": uma vivência da fé que não se dá somente nos claustros, mas é caminho dos trabalhadores, estudantes, pais e filhos. Não é uma inovação, mas é certamente um holofote em que a luz favorece um determinado local no palco da santidade.

A década de 1930 na Espanha foi marcada por intensas tensões políticas, sociais e religiosas, que culminaram na eclosão da Guerra Civil Espanhola, em 1936. O país vivia uma transição turbulenta entre regimes, ideologias e estruturas institucionais, resultado de uma crescente insatisfação com a monarquia e da busca por um modelo republicano. Com a proclamação da Segunda República em 1931, surgiram reformas ambiciosas que buscavam secularizar o Estado e promover a redistribuir de terra através de uma reforma agrária.


A literatura espiritual do século XX encontrava-se, então, em um ponto de virada. Influenciada por tradições místicas como as de Santo Agostinho ou Santa Teresa de Ávila, e desafiada pela secularização crescente, buscava novas formas de alcançar a alma moderna: apática e rebelde ao mesmo tempo. Caminho, com sua linguagem simples, direta e acessível, se apresenta como um contraponto à complexidade teológica dos tratados anteriores, feito para encaixar-se nas demandas do tempo do homem moderno trabalhador, que não quer ser soterrado pelo trabalho, mas usá-lo para a própria santificação. Seus aforismos curtos lembram os estilos provocativos de Pascal ou pequenos bilhetes de um padre que, muito ocupado com suas tarefas, deixa — como um pai — um bilhete para ser lido pela manhã. No entanto, a mensagem é direcionada não à crítica do mundo, mas à elevação do leitor no mundo.

Ao longo das décadas, a recepção da obra superou as expectativas do próprio autor. Traduzido para mais de quarenta idiomas, Caminho supera barreiras culturais e eclesiásticas, tornando-se uma espécie de manual de vida cristã para leigos em busca de santidade no ordinário. Talvez sua praticidade tenha contribuído para essa recepção acima do esperado. A catolicidade em seus escritos encontra recepção tanto nos corredores das universidades quanto nas casas simples.

Apesar de seu impacto positivo e da ampla difusão, Caminho também foi alvo de críticas, especialmente por parte de estudiosos que questionam sua abordagem direta e, de certa forma, imperativa. Alguns leitores apontam que o estilo aforístico, embora eficaz para provocar reflexão, pode parecer rígido ou excessivamente normativo — o que, para alguns, é sempre um problema, mesmo que todos saibamos que, sem regras, nada se faz, e o mundo seria bem mais caótico do que já é. Há quem veja na obra uma catolicidade voltada demais para o esforço pessoal, com menos ênfase na dimensão comunitária da fé — o que também, para os adeptos de uma teologia progressista, já seria em si uma afronta — sem considerar que o Senhor mesmo ia rezar sozinho muitas vezes e disse: "Até quando terei que estar convosco?". Enfim, como todos sabemos, a vida comunitária tem suas limitações. No entanto, a obra de São Josemaria, no geral, incentiva uma vida de oração litúrgica, em união com o Corpo Místico de Cristo, que é a ideia exata de comunidade. Outros críticos sugerem que, por estar intimamente ligado à espiritualidade do Opus Dei, o livro corre o risco de ser interpretado como algo exclusivo ou limitado a uma visão específica da vida cristã — o que realmente ocorreu, mas no sentido positivo, já que muitos vivem a espiritualidade da Obra sem pertencer oficialmente à instituição. No entanto, essas críticas também mostram a força da obra em gerar reflexões sobre teologia pastoral, numa ação de mostrar que as almas são diferentes.



3. Estrutura da Obra


Caminho possui 999 pontos de meditação. Esses pequenos fragmentos — alguns com poucas palavras, outros com frases mais densas — compõem um mosaico da vida cristã. Agrupados em 46 capítulos temáticos, cada um desses pontos funciona como uma pequena orientação espiritual.

A estrutura da obra não obedece à linearidade narrativa tradicional; ela assemelha-se mais a um jardim de caminhos que se entrecruzam. Temas como vida interior, santidade, apostolado, direção espiritual, liberdade e alegria surgem como trilhas recorrentes, apresentando uma teia de experiências e aspirações humanas.

O estilo de Escrivá é marcadamente direto e imperativo. Em vez de longos discursos teológicos, ele opta por frases que interpelam, verdadeiros convites à ação. Há uma dimensão poética que permeia cada linha, não pela estética formal, mas pelo poder de sugestão, pela simplicidade e pela intensidade do texto. A ausência de intermediários entre autor e leitor favorece o surgimento de uma relação íntima com a obra, que muitas vezes é lida como se fosse escrita especialmente para aquele que a lê, naquele instante preciso.

Nesse emaranhado de reflexões curtas e impactantes, Caminho propõe um itinerário espiritual dinâmico, que busca encarnar a fé na realidade concreta de cada dia. É nesse equilíbrio entre o silêncio da alma e a ação no mundo que a obra mostra sua verdadeira estrutura.




ESCRIVÁ, Josemaria. Caminho. 23. ed. São Paulo: Quadrante, 2013.






¹Ana Paula Barros

Especialista em Educação Clássica e Neuro Educação. Graduada em Curadoria de Arte e Produção Cultural. Professora independente no Portal Educa-te (desde 2018). Editora-chefe da Revista Salutaris e da Linha Editorial Practica. Autora dos livros: Modéstia (2018), Graça & Beleza (2025).

Possui enfática atuação na produção de conteúdos digitais (desde 2012) em prol da educação religiosa, humana e intelectual católica, com enfoque na abordagem clássica e tomista.

Totus Tuus, Maria (2015)







Um Conto Piedoso por Dia: A oralidade na formação humana

Professora Ana Paula Barros¹



Introdução



Os contos medievais são narrativas fantásticas transmitidas de geração em geração. Eles constituem um valioso patrimônio cultural, espelhando os valores, os medos, os sonhos e a visão de mundo das sociedades que os criaram e preservaram. Ao longo dos séculos, essas histórias, inicialmente veiculadas por meio da oralidade, moldaram o imaginário coletivo europeu e influenciaram profundamente a literatura, a arte e o folclore contemporâneo.

No entanto, em tempos marcados pela velocidade da informação e pela crescente valorização do novo, pode parecer anacrônico revisitar contos escritos ou contados há séculos. Justamente por isso, torna-se ainda mais relevante estudar essas narrativas: nelas reside uma sabedoria ancestral capaz de dialogar com questões humanas atemporais, como o bem e o mal, o medo, a justiça e a esperança. Além disso, o resgate desses contos permite compreender melhor as raízes culturais que ainda influenciam a sociedade atual, especialmente quando analisados a partir do esforço de estudiosos como os Irmãos Grimm.

Este artigo tem como objetivo analisar a origem dos contos medievais, o processo de resgate e preservação realizado por estudiosos — com destaque para os Grimm —, bem como o impacto que essas narrativas exercem até os dias de hoje. Pretende-se, ainda, destacar o papel das mulheres como guardiãs da tradição oral e refletir sobre os benefícios da leitura diária de contos, tanto para o desenvolvimento pessoal quanto para a manutenção da saúde mental. Tal objetivo é incentivado pelo projeto online Um Conto Piedoso por Dia, realizado neste mesmo ano.

Para atingir esses objetivos, será adotada uma abordagem interdisciplinar, fundamentada em pesquisa bibliográfica e análise comparativa. O estudo transitará entre os campos da literatura, da história e da psicologia, buscando estabelecer conexões entre o passado e o presente, entre o real e o simbólico.



2. Os Contos Medievais: Origem e Função

Entrar no universo dos contos medievais é como atravessar um portal para um tempo em que a imaginação era moldada pela oralidade, pela fé e pelos mistérios do mundo natural. Entre os séculos V e XV, em uma Europa marcada por instabilidade política, religiosidade e forte ruralização, as histórias circulavam de boca em boca, preservadas por vozes anônimas que, ao redor do fogo ou nas praças das aldeias, mantinham viva a memória coletiva de seus povos. A oralidade era o principal meio de transmissão cultural, uma vez que a maioria da população era analfabeta. Santa Joana d’Arc, que viveu no século XV, bebeu, como apontam suas biografias, dessa riqueza cultural propagada pela veiculação oral em praças. Nesse contexto, os contos não apenas entretinham, mas também educavam, transmitindo valores, crenças e estruturas simbólicas que moldavam o imaginário coletivo.

As narrativas medievais eram ricas em temas que refletiam as tensões e aspirações da sociedade feudal. O ideal da cavalaria, por exemplo, exaltava a figura do cavaleiro virtuoso, defensor da justiça e da honra, frequentemente envolvido em missões sagradas ou em dilemas morais. A religiosidade, por sua vez, permeava grande parte dessas histórias, com relatos de milagres, provações e recompensas divinas, reforçando a fé cristã como guia para a conduta ética. A moralidade era outro elemento central, com contos que encerravam lições claras sobre virtudes e vícios, punindo a soberba, a avareza e a traição, ao mesmo tempo em que recompensavam a humildade, a generosidade e a coragem. A magia e os elementos sobrenaturais também desempenhavam papel importante, introduzindo feitiçarias, criaturas míticas e objetos encantados que simbolizavam forças ocultas ou desafios interiores enfrentados pelos protagonistas. Esses elementos também possuem o aspecto de representar a ação espiritual — seja boa ou má — por meio da presença desses personagens míticos, que são, portanto, representantes do sobrenatural dentro das narrativas fantásticas.

Entre os personagens mais emblemáticos desse período, destacam-se figuras como o Rei Arthur, cuja lenda envolve a espada cravada na pedra, a Távola Redonda e a busca pelo Santo Graal, representando a união entre bravura, justiça e espiritualidade. Robin Hood, o fora-da-lei que roubava dos ricos para dar aos pobres, tornou-se símbolo de justiça social e, ao mesmo tempo, uma porta para refletir se o roubo deixa de ser roubo porque o roubado é rico — ou seja, uma reflexão moral sobre o que é justiça. Essas figuras, embora enraizadas em contextos históricos específicos, atravessaram seu tempo e espaço, sendo recontadas e adaptadas ao longo dos séculos até os dias atuais.

A função social dos contos medievais é, em primeiro lugar, atuar como instrumentos de educação moral, transmitindo ensinamentos éticos e religiosos de forma acessível. Em segundo lugar, ofereciam catarse, proporcionando momentos de encantamento. Por fim, desempenhavam um papel na preservação da memória coletiva e da identidade cultural dos povos europeus. Assim, os contos medievais não eram apenas histórias para passar o tempo, mas verdadeiros veículos de formação cultural, espiritual e social, cuja permanência no imaginário contemporâneo atesta sua força simbólica e sua relevância atemporal.



3. O Resgate Literário: Irmãos Grimm e Outros Estudiosos


No início do século XIX, em meio a um cenário europeu marcado por instabilidade política e pelo desejo de afirmação identitária, dois irmãos alemães, Jacob e Wilhelm Grimm, iniciaram um projeto que viria a transformar para sempre a relação entre literatura, tradição oral e identidade nacional. Movidos por um sentimento de pertencimento à cultura germânica e influenciados pelos ideais do Romantismo, os Grimm dedicaram-se a recolher, registrar e preservar os contos populares que circulavam de forma oral entre as camadas mais simples da população. Seu objetivo não era apenas literário, mas também político e linguístico: buscavam, por meio da valorização da língua e das tradições do povo, contribuir para a construção de uma identidade nacional alemã (busca de identidade coletiva) em um território ainda fragmentado e sem unidade política.

A publicação da coletânea Kinder- und Hausmärchen (Contos da Infância e do Lar), em 1812, representou um marco nesse processo de resgate da tradição oral. A obra, que reunia histórias como “Branca de Neve”, “Rapunzel” e “João e Maria”, foi fruto de uma extensa pesquisa de campo, na qual os irmãos entrevistaram mulheres camponesas, donas de casa e jovens da burguesia local, muitas vezes suas próprias vizinhas. Embora os Grimm tenham inicialmente se comprometido com a fidelidade às versões orais, ao longo das edições posteriores, especialmente por influência de Wilhelm, os contos passaram por sucessivas adaptações. Elementos considerados impróprios para o público infantil — como cenas de violência explícita, sexualidade velada ou finais trágicos — foram suavizados ou eliminados, moldando os textos a um ideal aburguesado de moralidade.

Essa transição da crueza original para versões mais “aceitáveis” mostra não apenas uma preocupação editorial, mas também uma tensão entre o desejo de preservar a autenticidade da tradição e a necessidade de adequá-la às expectativas de um novo público leitor. A censura e a reescrita dos contos, portanto, não devem ser vistas apenas como um ato de nivelamento social, mas também como um reflexo das transformações culturais e sociais do século XIX. Ainda assim, os Grimm mantiveram o compromisso, muito louvável, com a pesquisa e a documentação rigorosa, incluindo notas explicativas e variantes regionais em suas edições, o que conferiu à obra um valor etnográfico inestimável.

O trabalho dos irmãos Grimm inspirou uma série de iniciativas semelhantes em outros países europeus. Na França, Charles Perrault já havia iniciado, no século XVII, a transcrição de contos populares, embora com um viés mais literário e aristocrático. No século XIX, estudiosos como Elias Lönnrot, na Finlândia, com a compilação do Kalevala, e Alexander Afanásiev, na Rússia, com sua vasta coleção de contos eslavos, seguiram o exemplo dos Grimm ao buscar, nas tradições orais, os fundamentos de uma identidade nacional. Esses movimentos de preservação do folclore, muitas vezes associados ao nacionalismo romântico, contribuíram para o surgimento de disciplinas como a etnografia, a filologia e a antropologia cultural.

Além dos estudiosos, surgiram também instituições dedicadas à salvaguarda do patrimônio imaterial, como sociedades folclóricas, museus etnográficos e comissões de pesquisa. Essas iniciativas, espalhadas por toda a Europa, tinham como objetivo não apenas registrar, mas também valorizar e divulgar as manifestações culturais populares, reconhecendo nelas uma forma legítima de expressão artística e histórica. O folclore, antes visto como superstição ou resquício de um passado obscuro, passou a ser compreendido como um elemento vital da memória coletiva e da construção simbólica das nações, tal e qual os mitos no manto cultural que liga os povos.

Assim, o resgate literário promovido pelos irmãos Grimm e por outros estudiosos europeus não se limitou à preservação de histórias encantadas. Ele representou um movimento mais amplo de valorização da cultura popular, encontro com a identidade coletiva — ou os fragmentos dela — e de resposta à homogeneização cultural imposta pela modernidade. Ao transformar a oralidade em literatura, esses autores não apenas eternizaram vozes anônimas, mas também abriram caminho para uma nova forma de compreender o passado — não como um vestígio a ser superado, mas como uma herança viva, capaz de contribuir para o presente e inspirar o futuro.




4.  As Guardiãs da Tradição Oral


Ao longo da Idade Média, em meio a uma sociedade marcada pela primazia da oralidade como forma de transmissão cultural, as mulheres desempenharam um papel fundamental — ainda que frequentemente invisibilizado — como guardiãs da tradição narrativa. Em lares humildes, ao redor do fogo, ou nas feiras e celebrações populares, nos mosteiros e reuniões religiosas, eram elas que, com voz firme ou sussurrada, transmitiam histórias que atravessavam gerações, preservando não apenas enredos, mas também valores, saberes e experiências.

Essas narradoras anônimas, muitas vezes idosas, mães de família e religiosas, eram as responsáveis por manter viva a memória coletiva. Por meio dos contos, transmitiam ensinamentos sobre o mundo, sobre a alma, sobre o amor, a maternidade, a dor, a piedade, o mal, a fé, a bondade. Suas histórias, embora revestidas de importantes elementos fantásticos simbólicos, carregavam uma sabedoria prática, afetiva e efetiva, moldada pela vivência cotidiana e pela observação da realidade. São contos de moralidade, são contos de teologia prática. A oralidade, nesse contexto, não era apenas um meio de comunicação, mas um espaço de elaboração simbólica da experiência humana.

Contudo, a história oficial — voltada para os feitos da nobreza, da Igreja e da guerra — tende a relegar essas narrativas ao silêncio ou ao território infantil. A ausência de registros escritos sobre essas guardiãs culturais não significa ausência de atuação, mas sim um apagamento sistemático, resultado da crença imatura de que contos e mitos não são tão importantes quanto tratados filosóficos, sendo que, no entanto, são a base da formação do imaginário coletivo europeu — assim como as parábolas são as pérolas do evangelho. A tradição oral, por sua natureza efêmera e performática, não se fixa em documentos, mas em memórias, gestos e entonações. E, por isso mesmo, foi durante séculos considerada inferior à cultura letrada, mesmo no âmbito católico, ainda que o próprio Senhor tenha dela feito vasto uso.

Nas últimas décadas, no entanto, o avanço dos estudos literários, da antropologia e da história cultural tem permitido um resgate vigoroso dessas narrativas e, por fim, de suas narradoras. Pesquisadoras e pesquisadores têm se debruçado sobre fontes alternativas — como registros folclóricos, relatos etnográficos, literatura popular e tradições orais ainda vivas em comunidades rurais — para reconstruir a presença e a importância dessas mulheres na transmissão do saber. Esse movimento de resgate não é apenas acadêmico, mas também político e simbólico: ao reconhecer a contribuição dessas narrativas e de suas narradoras, ao reconhecer a importância da tradição oral, reconfigura-se o próprio entendimento do que é cultura, memória e autoria — além da reconfiguração do que constitui o acervo filosófico, teológico e literário do Ocidente.

Ao contar histórias, as narradoras não apenas preservavam as narrativas, mas também afirmavam sua voz e contribuição complementar no cenário de produção cultural, artística, filosófica e teológica. A contação de histórias era o espaço para expressões de seus prismas sobre os assuntos: críticas veladas, reflexões mais palatáveis, esperanças e medos. Era um ato de criação e de uso do poder simbólico para um fim nobre, que lhes conferia autoridade e respeito dentro de suas comunidades.

Hoje, ao revisitarmos essas vozes esquecidas, que se perderam no fluxo do tempo, não apenas lhes devolvemos um agradecimento, mas também nos inspiramos para encorajar o papel complementar da mulher também nas produções culturais contemporâneas, das quais são as principais guardiãs. A tradição oral, longe de ser um vestígio do passado, continua a ser uma ferramenta potente de atuação e de construção social virtuosa.



5. Um Conto por Dia: Benefícios Cognitivos e Emocionais


Em meio à agitação cotidiana, marcada por estímulos constantes, prazos apertados e uma avalanche de informações, a leitura de contos surge como um refúgio. Uma prática ancestral. Ao dedicar alguns minutos do dia à leitura de um conto, o leitor se permite uma pausa restauradora, um mergulho em universos simbólicos que alimentam a mente, tocam as emoções, despertam a imaginação — além de cumprir o papel de ser um lembrete virtuoso.

A leitura cotidiana de contos tem sido associada a diversos benefícios cognitivos e emocionais. Estudos indicam que o simples ato de ler por alguns minutos pode reduzir significativamente os níveis de estresse, promovendo relaxamento e bem-estar mental. A imersão em uma narrativa, mesmo que breve, desacelera o ritmo interno, regula a respiração e proporciona uma espécie de “desligamento” das tensões externas. Além disso, ao acompanhar os dilemas, sentimentos e transformações dos personagens, o leitor exercita a empatia, desenvolvendo a capacidade de se colocar no lugar do outro e compreender diferentes perspectivas humanas.

Do ponto de vista cognitivo, a leitura regular estimula áreas do cérebro relacionadas à linguagem, à memória e à criatividade. O contato frequente com diferentes estilos narrativos, vocabulários e estruturas textuais amplia o repertório linguístico e fortalece a capacidade de interpretação e análise crítica. Os contos, por sua natureza condensada, exigem do leitor atenção aos detalhes, sensibilidade para nuances e habilidade para captar significados implícitos — competências fundamentais para o pensamento reflexivo (tão raro na sociedade brasileira) e a comunicação eficaz.

Mais do que um exercício intelectual, o conto é também uma ponte para o imaginário coletivo. Ao revisitar figuras, símbolos e estruturas narrativas que atravessam culturas e épocas, o leitor se reconecta com uma dimensão simbólica, muitas vezes negligenciada pela racionalidade moderna. Lendas, fábulas, mitos e histórias populares carregam em si uma sabedoria ancestral, que continua a ecoar nas inquietações contemporâneas. Assim, ler um conto é também revisitar a própria humanidade, já que é uma visita à memória da humanidade, diluída em lendas, mitos e contos.

Nesse contexto, propõe-se a prática de ler “um conto por dia”. Ao reservar um momento diário para a leitura de uma narrativa breve, o leitor cultiva um espaço de reflexão e encantamento, construção necessária para a independência intelectual e a mentalidade filosófica. A frase “um conto por dia mantém a alma encantada” sintetiza essa ideia: trata-se de alimentar o espírito com pequenas doses de beleza, reflexão e imaginação, regar a alma com maravilhamento, como quem rega uma planta ou acende uma vela ao entardecer.



6. Considerações Finais


Os contos medievais, portanto, não pertencem ao passado; eles nos falam do presente com uma clareza surpreendente, mostrando que, apesar das mudanças tecnológicas e sociais, a alma humana permanece inquieta, com sede de um "não sei quê" que, para alguns, segue sem nomeação.

Nesse percurso, tornou-se evidente a necessidade de reconhecer e valorizar as mulheres como protagonistas da tradição oral. Foram elas, muitas vezes anônimas, que mantiveram vivas essas histórias, norteadoras de almas, ao longo dos séculos. Em suas vozes, transmitidas de mãe para filha, de avó para neta, de madre para noviça, os contos ganhavam corpo, emoção e sabedoria. Ao narrar, essas mulheres preservavam a memória coletiva de seus povos e da cultura católica. Resgatar as narrativas e narradoras é dar espaço às vozes que moldaram o imaginário europeu e que, por tanto tempo, ficaram desconhecidas.

Por fim, reafirma-se a leitura como uma ponte poderosa entre tempos, mundos e dimensões humanas. Ao abrir um conto medieval, o leitor contemporâneo atravessa um portal simbólico que o conecta ao passado e ao fantástico. Essa travessia, ao mesmo tempo estética (no sentido de apreensão pelos sentidos) e emocional, permite que o real e o imaginário se entrelacem, oferecendo novas formas de compreender a si mesmo e o mundo. Ler um conto é, nesse sentido, um ato de reconexão com a ancestralidade e a catolicidade, com a linguagem simbólica e com a própria humanidade.

Assim, os contos medievais não são apenas objetos de estudo literário, mas testemunhos vivos da experiência humana e cristã. Ao reconhecermos sua relevância, ao valorizarmos as mulheres que os transmitiram e ao cultivarmos o hábito da leitura, mantemos acesa a chama de uma tradição que ainda tem muito a nos ensinar — sobre nós mesmos, sobre os outros e sobre o poder transformador das palavras inspiradas na boa nova cristã.




¹Ana Paula Barros

Especialista em Educação Clássica e Neuro Educação. Graduada em Curadoria de Arte e Produção Cultural. Professora independente no Portal Educa-te (desde 2018). Editora-chefe da Revista Salutaris e da Linha Editorial Practica. Autora dos livros: Modéstia (2018), Graça & Beleza (2025).

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